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“A Origem do Ódio - Crónica de um Retiro Sentimental”, de Rui Ângelo Araújo, edição da Língua Morta (2015), é uma novela de 92 páginas sobre essa condição universal que é o ressentimento amoroso de alguém que não aceita o final de uma relação. Não, o tom e o estilo nada têm de auto-ajuda travestida de ficção. É cru, faz-se de aforismos pessimistas sobre a natureza humana e fixa-se em pormenores de um dirty realism muito cá da casa, tendo como referência ocasional o “patético protagonista” de “Bunny Munro”, romance do senhor Nick Cave, praticante da ancestral arte da maturbação mesmo nas imediações do caixão da mulher.
O narrador-protagonista desta espécie de relato que resulta num desabafo catártico apaixona-se por Sílvia, menina de uma alegada casta superior, de boas família e vastos privilégios, e acaba por ser abandonado na sequência de um, digamos, pouco elegante esbofeteamento.
Qual o movimento psicológico do sujeito, entretanto transformado em advogado burguês, depois da rejeição contínua da mulher que continuava a querer? Esse. “Se não podia amar a minha mulher tinha de a odiar”. O ódio, sim, esse terrorismo mental sempre à espera de uma oportunidade de emprego. O ambiente onde tudo decorre oscila entre o que se respira nas nobres quintas do Douro e as misérias habituais do facebook.
As reflexões, com referências artísticas (literárias, musicais) do narrador despeitado, ressentido e vingativo, intelectualizam-no. É a fala de um homem feito de desilusões maturadas pela vida e pelas leituras. Mas que desconfia do seu talento para desfilar o enredo de sua mistura de ilusão e desilusão amorosa: “Sou um advogado que escreve como um engenheiro e argui na barra como um feirante (....), como posso eu falar de amor?”. Mas que é capaz de passagens bem sacadas sobre a natureza humana: “Os homens e as mulheres seriam certamente muito mais infelizes se não tivessem o abrigo da noite para cumprirem os seus ritos proscritos, se a luz do dia fosse permanente e com ela permanente a possibilidade de serem vistos”.
O paulista, descendente de argentinos, Julián Fuks escreveu “A Resistência” (Companhia das Letras, 2016), um livro no qual o narrador tem um irmão adoptado e tenta escrever sobre ele - sobre a relação que manteve e mantém com ele, sobre as palavras a que recorre para o nomear. Com todos os cuidados, com uma coreografia lenta de muitas inquietações. É feito de um imenso pudor o avanço desta pesquisa. Apresenta uma rima com o livro de Rui Ângelo Araújo: é sobre um sentimento que se pesquisa literariamente. Há um mesmo tom ruminativo e obsessivo de quem procura respostas que levam tempo a chegar.
Agora não é um amor arruinado e as suas sequelas mas sim o amor fraternal que o narrador investiga, com avanços e recuos, descobertas ocasionais. Não é raro emergir um sentimento de remorso: “Estarei com este livro tratando de lhe roubar a vida, de lhe roubar a imagem, e de lhe roubar também, furtos menores, o silêncio e a voz?”. Também existe o tactear dos fragmentos contados do passado familiar. Gesto que ora afirma ora retira a afirmação para deixar uma dúvida. “Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre um apego incompreensível à realidade (...) e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar”. Se houvesse um género para encaixar este livro seria o de livro-dúvida.
A história não é só sobre um irmão que foi adoptado num contexto extremo da História da Argentina, feito de muitos desaparecimentos, torturas e orfandades. Também é sobre os pais, guerrilheiros de esquerda, expulsos de Buenos Aires em tempos de ditadura militar, quando o irmão nem seis meses de idade somava, sobre a sua clandestinidade, a sua luta, a sua forma de sobrevivência. Foram viver para o Brasil, onde se instalaram oficialmente depois do nascimento de uma filha.
Há um remorso não só associado ao gesto de escrever sobre o que nunca poderá ser capturado mas também à circunstância de a certa altura o irmão adoptado revelar as suas mágoas em relação à família, distraída entre profissões, obsessões, quimeras e esquecimentos.
A linguagem é sempre sóbria e vigilante dos seus excessos: “São falaciosas essas perguntas, líricas demais para guardar uma verdade”. Desconfia da própria literatura: “Nenhum livro jamais poderá contemplar ser humano nenhum”. Mas pode tentar. E é o que fazem, nestes dois livros, Rui Ângelo Araújo e Julián Fuks: tentar. Tentar a aproximação possível.
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