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Havia um indivíduo bigodudo que dizia que a sua pátria era a língua portuguesa. A minha é outra. A minha é a pastelaria portuguesa. Escrevo em pastelarias. Garanto-vos: a crónica corre melhor quando escrita aqui, entre o empregado dos correios que todos os dias, à mesma hora, mastiga, com a maior das elegâncias, a sua salada de fruta e uma senhora que, ao fim da tarde, não resiste em vir comprovar que o éclair de ontem estava melhor do que o de hoje.
Lembro-me de Mário Cesariny, de cuja morte passam 10 anos, quando escreveu, num poema intitulado Pastelaria, "(…) afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo/ à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo (…)". A propósito: vi Cesariny, nos anos 90, num café, o Café Estádio, no Bairro Alto. Na altura não havia selfies. Quando tudo era possível não havia selfies.
Mais aqui.
Pelo menos já ganhámos um título para uma revista à portuguesa: "Sexo em Eurogrupo".
Quem sobreviver ao início, literária entrada a pés juntos, fica preparado para o resto do trágico festim. “Ouçam. Os mortos nunca param de falar. Talvez porque a morte não seja morte nenhuma, apenas ficar de castigo depois das aulas. Encontras-te com homens que morreram antes de ti, que passam o tempo a andar, embora sem destino, e ouve-los uivar e sussurrar, porque somos todos espíritos, ou pelo menos achamos que somos todos espíritos, mas na verdade o que somos é pessoas mortas”. Aqui não há salvação. Marlon James não é Raul Minh’Alma.
A narrativa vai-se desenhando à medida que as várias vozes que, “falando” na primeira pessoa, se vão juntando num coro violento e gira à volta de um acontecimento histórico: a tentativa de assassinato de Bob Marley, “aquele tipo do reggae, que se tornou mais popular do que o pão de forma”, na véspera de um concerto, acontecimento que não impede Marley, ferido no peito e num braço, de dar, dois dias depois, um concerto para 80 mil pessoas – o artista, apresentado como “O Cantor”, é descrito a certa altura como um “daqueles tipos que podia falar com Deus e o Diabo e conseguir que eles fizesse as pazes – até porque nenhum é casado”. É um violento épico, que viaja pelas três décadas seguintes no coração do universo dos gangues e políticos jamaicanos, no qual cabem dezenas de personagens, de testemunhas a traficantes de droga e de armas, passando por agentes da CIA, do FBI e jornalistas.
Pontuado de referências musicais – do ska ao rock, passando naturalmente pelo reggae - e com um ambiente tarantinesco, este é um romance de linguagem e só quem conseguir atravessar esta linguagem que, num jorro de desespero, destilando o seu desespero - aqui e ali atravessado de algum humor - conseguirá conseguirá sobreviver. Há frases mal construídas, palavras cortadas, matéria para enganar gralhistas. José Miguel Silva é o autor do gesto de tradução - heróico, sim - de fazer o português dançar ao som desta banda sonora das ruas, das casas e dos guetos da Jamaica. “O gueto é um cheiro. Um cheiro por vezes agradável: o pé de talco que as mulheres usam nos seios, Old Spice, English Leather e água de colónia Brut. O odor pesado a cabra recentemente abatida, a pimenta e pimentão numa sopa de cabeça de cabra. De novo a pimenta num frango picante. Um odor a químico de detergente, a manteiga de cacau, a ácido carbólico, sabão de lavanda, mijo fermentado e merda seca a correr pelas valetas. O cheiro de cordite de uma arma recém-disparada, de caca em fraldas de bebé. O odor metálico do sangue coagulado de um assassinato em plena rua, que permanece no local depois de o cadáver ter sido removido”. Entrevista ao autor aqui.
Um disco recém-editado trouxe-me à memória Ruy Belo. É um dos meus poetas. Comecei a lê-lo depois de ter aterrado em Lisboa, na qualidade de pára-quedista açoriano. Fui seduzido, antes de mais, pelo humor do seu lirismo. Como neste “Epígrafe Para a Nossa Solidão”:
Cruzámos nossos olhos em alguma esquina
demos civicamente os bons dias:
chamar-nos-ão vais ver contemporâneos
Depois, a propósito de um trabalho de documentário e de um artigo para a revista Ler, conheci outras facetas de Ruy Belo. A de filho da sua terra, São João da Ribeira, no Ribatejo. A de “vencido do catolicismo”. De crente que se foi desiludindo e ganhando melancolias. A de homem comprometido politicamente, elemento da CEUD e autor do poema “Portugal Futuro”.
A de filho também, que escreveu sobre o pai assim: “Era o meu pai era esse sonhador incorrigível/ sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias”. A de amante de futebol e de jogador, com o José Medeiros Ferreira, na equipa da Faculdade de Letras.
Mas voltemos à sua dimensão espiritual. José Tolentino Mendonça escreveu, num artigo magnífico, incluído no volume “O Hipopótamo de Deus”, o seguinte: “Talvez fosse agora tempo de começar a olhar esta poética naquilo que ela também é: aventura espiritual intensa como poucas (…) quase circularidade entre presença e silêncio, entre dúvida e crença”.
Manuel Fúria e os Náufragos acabam de editar um álbum, “Viva Fúria”, em que evocam Ruy Belo em dois temas: “Cala-te e Dança” e “Aquele Grande Rio”. Sim, “Aquele Grande Rio” celebra “Aquele Grande Rio Eufrates”, título do seu primeiro livro, de 1961. Ruy Belo, em 2017, numa pop que passei ontem no programa Cais de Encontro, do Antonio Sousa.
"Afogada na tua vergonha", com textos de Roberto Corte e Sarah Kane (sim, isto não é pa meninos), dramaturgia e encenação de João Rosa. Amor, violência, consumo, anúncios vintage, neurotransmissores, antidepressivos, solos de bateria, uma homenagem à coreografia dançante de Ian Curtis, fraseados poéticos sobre fundo rockeiro que trazem à memória Mão Morta, referências a Safo, uma frase: "a vida a comer-te bem comida". Cantos de maldoror de um homem e uma mulher para quem o romance se tornou numa espécie de filho bastardo do bullying. Um dos momentos da peça é aquele em que cai uma perche sobre as suas cabeças, a tentar registar o que devia ficar entre os dois mas que precisa de ser captado por um mundo que não faz sequer ideia o que é a intimidade. Catarina Gonçalves e Eduardo Frazão estão portentosos no pára-arranca deste jogo de verdades que doem. Na Comuna até domingo.
Onésimo Teotónio Almeida, em "A Obsessão da Portugalidade" (Quetzal, 2017)
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