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Notas a Céu Nublado com Boas Abertas, de Nuno Costa Santos Por Rui Lopo

por Nuno Costa Santos, em 20.07.16

 

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Não penso o que vai ser o pós-morte. Em vez disso, quero ficar. Quero saber o que é que ainda pode ser a vida, uma existência com engulhos mas ainda assim habitável e – por mais que a literatura a pinte com justiça num negro monocromático – é atravessada aqui e ali por pequenos milagres, alentos solares. (p.177)

Esta é uma estória sobre um avô e um neto. E a sua profundíssima ligação. O avô, João Pereira da Costa, está nos anos 40, ainda sem filhos, no Caramulo, exilado na montanha, segundo a sua expressão, tentando tratar-se de uma gravíssima tuberculose. Descreve o seu sofrimento físico e a angústia que o acompanha, a angústia de estar só, da improbabilidade da cura e da dúvida crescente sobre o seu lugar na sociedade e no mundo, sobre a impossibilidade da crença na religião tradicional, assim como sobre a inevitabilidade de enfrentar o que ela representa e o que a ela subjaz de mistério e de sentido. O avô escreve um relato que é uma carta ao futuro, pede a um descendente, que se interesse pela escrita, que se desloque aos Açores, a S. Miguel, a Ilha, para trazer de volta estórias do seu tempo. Por ventura, para as contrastar com aquelas que ele descreve nesse longo diário biográfico. Assim feito, o neto, patentemente interessado pela escrita, vai para a ilha procurar os lugares da pertença familiar e aí lendo devagar o texto do avô.

O livro, então, formalmente, é feito do intercalar constante do relato do avô, umas vezes em directo, na primeira pessoa, outras, em diferido, mediado pela leitura que dele o neto vai efectuando, e do relato das peripécias da sua – que é a nossa – actualidade.

O narrador actual não deverá ser confundido com o autor. Apesar de imensas semelhanças, a coincidência não poderá ser nunca absoluta. O narrador actual nunca é nomeado, mantendo-se a dúvida sobre a sua identidade, para além da sua condição de neto de João Pereira da Costa. Essa talvez seja uma das astúcias maiores deste livro. Criar a verosimilhança dos acontecimentos através da sugestão no leitor de que narrador e autor são uma e mesma pessoa, assim como ir utilizando várias marcas de realidade no meio da ficção.

 

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O paralelo entre o avô e o neto tem mais que muitas virtualidades. A solidão, a estranheza, a sensação de que há algo impossível por viver, uma certa inadaptação ou desadequação existencial que o micaelense actual experimenta são paralelas àquela que o seu avô vivenciou a partir da sua doença e do moroso e sacrifical processo de cura numa montanha nada mágica, mas igualmente sanatorial, como a de Mann. A doença, na sua concretude aflita, é símbolo máximo deste feixe de percepções. O leitor vai sendo ainda perpassado por um enorme conjunto de subtis e instigantes estranhezas: Há nomes semelhantes ou parecidos (o apelido Costa que se repete); o narrador é apresentado como micaelense mas parece não conhecer ninguém, só vagamente; o avô padece de tuberculose e o neto padece de asma, doenças respiratórias as duas e que remetem para a asfixia, frustração de querer respirar e não o conseguir, sinédoque ou metonímia da vontade de viver frustrada por mil e uma causas, condições e agentes: pela natureza imprevisível, feita de terramotos, vulcões e tempestades naufragantes, por doenças injustas; por um porteiro que não nos deixa entrar na discoteca onde seríamos felizes. E esta talvez seja uma das alegorias mais bem conseguidas de tantas que marcam o volume. Deus, o porteiro cósmico, não nos permitiu entrar onde achamos que pertenceríamos, onde julgamos que deveríamos estar, onde nos acolheríamos em prazer ou felicidade. Daí o ressentimento. O veneno da alma que nasce destas perguntas: Porquê? Porque terá sido assim? Porque me terá acontecido a mim? Qual a solução? Uma hipótese de resposta será a vingança. Mas esta, movida pelo ressentimento, é cega e o nosso narrador é confundido com o tal porteiro, o que o leva a ser vítima de uma tentativa de assassinato. Mas não era ele o porteiro, apesar de ser o autor de todo este cosmos, ou o nosso porteiro à entrada deste mundo. Daí que o louco agressor esteja paradoxalmente correcto. Qualquer autor sujeita-se a ser assassinado pela sua criatura, não é? Daí que o autor ou porteiro deste mundo seja constantemente procurado e imprecado, às vezes louvado por um personagem que percorre as madrugadas de terço na mão, outras repreendido pelo seu sadismo ou indiferença pelas suas criaturas, outras pura e simplesmente acusado de inexistência. Mas a asma, sinédoque de todas as frustrações, impele a acção romanesca. A asma traz-me uma segunda asma: a ansiedade. A asma do espírito (p.118) Neste romance o avô é assim um duplo do neto, um fantasma identitário e um convite a um mergulho no inconsciente, enfrentando o que lá está, que é sempre o absurdo da perda: a libertação da dor física não nos livra da vivência da outra dor. A mestria do autor também se nota no modo como sabiamente evita os anacronismos e como não amalgama o avô e o neto, colocando em paralelo as suas angústias mas logrando traduzi-las em dramas geracionais culturalmente diversos (ainda que partindo da mesma e comum humanidade essencial: a resposta filosófica do avô à sua doença, nos anos 40, é colocada entre a fé tradicional e a racionalidade política e científica; em 2014, a percepção de Deus oscila mais descontraidamente entre a visão de um agente mau, cínico, zombeteiro, absurdo ou – afinal – inexistente, mas as respostas racionalistas também parecem ser aqui vistas a partir de um prudente distanciamento).

 

 

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Para além da doença, esconde-se a mágoa, a aflição, o ressentimento, a depressão. Constatar a dor, procurar a sua origem, constatar o horizonte da sua cessação, pormo-nos a caminho, literariamente, com equanimidade, mas sem perder a empatia, tanto maior quanto se constata como todas as cenas dependem umas das outras, num feixe de ligações infindo e indeslindável (como a stripper ser irmã do juiz). Endurecer sem perder a ternura, como dizia Ernesto Floresta.

A par desta descrição carinhosa do terrunho dos antigos, há também a atenção à actualidade, expressa sem ostensão nem fugas: a droga, a prostituição, vistas sem juízos de valor, mas remetendo para a paradoxal falta de horizontes no local onde o horizonte mais surge aos homens sob o signo do infinito. O mar.

As peripécias que vão compondo a viagem à Ilha (algumas delas, - provavelmente as menos inventadas – mui dignas seriam de figurar num caderno vermelho à Auster) e as personagens com que o narrador se vai cruzando, mesmo quando marcadas pelo absurdo ou pelo patético, não são julgadas mas mostradas na sua fragilidade. De realçar ainda o revelador cuidado em descrever a terra na sua humanização. O romance é abundante de topónimos que remetem não só para uma topografia íntima (para usar a bela e funda expressão de Domingos Lobo), uma microgeografia subjectiva – o lugar do primeiro beijo, a ravina onde se perdeu em criança, o mar onde se ia afogando – mas também para a asserção da nobilitante dignidade do singularmente remoto, do ínfimo, e do ermo. A par desta descrição carinhosa do terrunho dos antigos, há também a atenção à actualidade, expressa sem ostensão nem fugas: a droga, a prostituição, vistas sem juízos de valor, mas remetendo para a paradoxal falta de horizontes no local onde o horizonte mais surge aos homens sob o signo do infinito. O mar.

 

 

O livro que se tenta fazer é que é o livro que realmente se faz. São as peripécias de hoje que dão sentido às dores do avô. Foram as dores do avô que abriram a esperança na existência deste futuro. A prisão absurda pela qual o narrador passa é tão absurda e tão prisão como a doença do avô. Como a agressão perpetrada pela vítima do porteiro, que se chama Marinho, adjectivo que se aplicaria todos os ilhéus. Como a alergia quase fatal provocada pela combinação mágica de um fino e de um camarão, petisco que o menu deliciosamente apresenta sob o nome de absurdo. Como a recordação do quase afogamento ou da quase queda da infância. Desta sucessão de quases surge o sentido global. Céu nublado com boas abertas.

 

 

Além do cultivo da toponímia, com o sentido que apontámos, refira-se ainda a citação de expressões regionais, e a especulação sobre os seus sentidos mais profundos; o respeito quase terno pela religiosidade popular, que o avô teve de rejeitar com dramatismo, vista como paisagem anímica e como linguagem própria de uma história complexa cheia de dores e de metáforas salvíficas, ou a evocação de autores açorianos menos conhecidos, de novo, com candura e gratidão, assinalando uma pertença, uma busca identitária e um resgate ao olvido, como se está fazendo com o relato do avô, símbolo de todas as pertenças. Mas a tradição, como registo da passagem dos homens pelo mundo, é multímoda e contraditória, açoitada por ventos e terremotos. Daí que a dado momento o narrador declare coleccionar fotos tremidas. Essa é a modalidade mais certeira de guardar o mundo (p.168)É a tradição catálogo ou álbum destas tremuras.

O aforismo é um dos dons do autor e inscreve-o também numa nobre, riquíssima e desatendida tradição portuguesa, devedora talvez da nossa matriz mediterrânica, tanto na sua componente semita, judaica e arábico-muçulmana, em seu adagiário proverbial, como na componente clássica, greco-latina, em seu fulgor epigramático.

A personagem que faz de actor que representa que é um poeta numa terra de poetas também nos surge sob o signo da alegoria. Símbolo dos Açores, figurado como símbolo do açoriano que representa um papel para o turista, mas porventura com o sentido mais vasto do português actual que parece apenas viver encenadamente para beneficiar da visita do estrangeiro, mas é também símbolo da universal pantomima em que nos enredamos nos papéis sociais que vamos assumindo. Valorize-se ainda o talento já evidenciado noutras obras e aqui utilizado com segura medida para o cultivo do parágrafo lapidar, da observação sagaz, do aforismo como caminho e como meta da narrativa, porventura na linha de uma questa sapiencial do autor que se insinua e se entrevê, e por pudor se não manifesta mais berrantemente. O aforismo é um dos dons do autor e inscreve-o também numa nobre, riquíssima e desatendida tradição portuguesa, devedora talvez da nossa matriz mediterrânica, tanto na sua componente semita, judaica e arábico-muçulmana, em seu adagiário proverbial, como na componente clássica, greco-latina, em seu fulgor epigramático. Além do aforismo (que pode isolar-se – ou insular-se – da narrativa) registe-se o uso do sketch. Sim, do sketch. O aforismo e o sketch são géneros literários ilhéus. Ou são ilhas no meio de uma narrativa que é um continente. Certos delírios do narrador, além do valor alegórico e consolador que detêm, visando a descompressão do cenário de doença, servem como entremeses, como episódios dentro da narrativa maior, ampliando a sua dimensão simbólica e podendo perfeitamente ser utilizados separadamente, como aliás o autor já fez, na sua encarnação televisiva como Melancómico, com o episódio da maçonaria dos insones, aqui descrita como Ordem dos insones. Uma forma de dar dignidade aristocrática a quem não consegue fechar a pestana. Pessoas que se reuniam de noite para fazerem companhia umas às outras (p.194). Outra imagem do sentido possível da vida humana: pessoas que na noite, isto é, nas trevas da dor, da doença, do sofrimento moral, fazem companhia umas às outras.

 

 

A revolta daquele que não entrou na discoteca acaba por levá-lo a cometer o assassinato do porteiro e assim acaba preso. Agora a mágoa virar-se-á contra quem não lhe abriu a porta de saída (p-173). Esta personagem serve como linha de fuga, prevenindo-nos contra esta mágoa ressentida, aflição atroz ou revolta metafísica, noutras palavras: contra a solução anteriana para a cura do absurdo. Mas o absurdo afinal era apenas uma alergia. Ou um petisco.

 

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