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O último episódio do melancómico – merece a visita ao bairro, nem que seja por ser o epílogo de um imaginário desenhado com rigor estético e fundado na procura de retratar o estado do personagem no actual momento da sua imaginária existência. Descobriu outro bairro, Campolide, e foi aí que encontrou novos lugares, novos amigos, novos enredos, mantendo sempre o mesmo corte de cabelo.
Não, não ponham para a frente. Este episódio tem o ritmo de uma lenta melancolia necessária a um final que a pediu. É um adeus ao bairro durante o qual se ouvem as músicas recorrentes da sua banda sonora.
Há uma coincidência com a actualidade: na conversa inicial com o João Cunha, o único amigo do melancómico tenta convencê-lo a sair do bairro, a ir ver o mundo lá fora. E o melancómico questiona. Para quê? Para ir para um offshore de engratados? Foi mesmo uma coincidência porque o episódio foi gravado há umas largas semanas.
Adeus RTP 3. Que venham mais projectos assim, óvnis ora poéticos ora humorísticos ora documentais, que sustenham por breves minutos a saliva que os jornalistas televisivos têm pela informação pronta-a-comer. Que venham outros, com outras experiências, com outros imaginários. E em formatos curtos também. É missão da RTP apostar em formatos curtos de imaginários alternativos – porque só uma estação de serviço público o pode fazer.
O que me liga à Maria João Carrilho? O gosto pela literatura, por teatro, por música, por África. A minha ligação a África é muito diferente da que a Maria João tem – ela que viveu por lá. Pisei África com os filhos daqueles que combateram do lado africano na guerra colonial. Aconteceu nos tempos da Faculdade, num projecto chamado África Renasce, que tentava compreender os processos de democratização dos países de expressão portuguesa. Estivemos em Moçambique e Cabo Verde. Nunca mais vi os meus amigos desses tempos – angolanos, moçambicanos, são-tomenses, timorenses. Onde andarão agora?
Antes de mais, nota decisiva: li o livro ao som dos cabo-verdianos Tubarões. E de Miles Davis, Ottis Redding e Joan Baez, evocados no livro. Mas mais com a melodia dos Tubarões. Combinam com a África do livro, aquela que podemos, leitores, visitar: a África dos batuques, dos camarões com piripiri, dos embondeiros, do ritmo quente sobre a terra vermelha.
Mas não estive só em África mas mesmo nessas deambulações fora do continente continuei a ouvir as mornas, as coladeiras e o funaná da banda que teve Ildo Lobo como maestro. Estive em Portugal, em França, na Alemanha. Conheci personagens como Tiago, Frederico e Raquel. Visitei sentimentos tão antigos e urgentes como o desejo de partir, de desejar o que não se sabe, o tormento de voltar e de estacionar no cinismo. O receio de se viver vidas assim-assim. A saudade de um cacilheiro africano com praia à volta. O medo de morrer e o medo de matar. Ouvi – e aqui faço uma ligação directa ao nome da editora deste livro – os sons da guerra e da paz. A certa altura faz-se uma pergunta simples e urgente: “Como é que se faz para que a guerra acabe?”. É claro que a guerra a que se refere é a guerra colonial mas é uma frase essencial que se pode aplicar a todas as guerra.
Senti a melodia da literatura – que é disso que aqui se trata. Este livro, sendo uma narrativa, tem o tom de um poema-corrente de bonitos versos, cheios de significado. “Num frio Inverno de Lisboa, o ritmo quente de outro tempo”. “Escolheste o caminho do mar”. “A solidão é isto: desembarcar numa terra onde não se conhece nada nem ninguém”. E uma passagem que resume a condição sempre frágil da vida, sobre qual trata a melhor literatura. “Todos estamos em trânsito, todos e sempre. Não há mais nada além disso, nada”.
Atrevo-me a dizer que há: a leitura de livros como este “Praça do Império”, celebração da memória e do presente através da arte de bem escrever.
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