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Não poria um sapo em cada estabelecimento para afastar os ciganos. Poria um cigano em cada estabelecimento para afastar os sapos. Matéria para uma próxima curta.
Casei os livros de crónicas de João Pereira Coutinho, “Vamos ao Que Interessa” (Dom Quixote, 2015) e “Caviar é uma Ova”, de Gregorio Duvivier (Tinta da China, 2015). Celebrei este casamento literário à revelia dos autores. Os livros já não vivem um sem um outro. Vou alternando a leitura das crónicas – em casa, no café, no metro, nas idas à oficina, na manicura. Ora leio uma crónica do João, ora leio uma do Gregorio. E sinto-me completo, sacerdote agradecido por tanto gozo que me têm dado os textos dos dois.
Dir-me-ão: são diferentes os cronistas, vêm de uma tradição diversa, pensam de forma oposta, um é conservador, o outro é progressista, vestem-se de forma contrastante. Isso nem sempre é verdade – ambos têm a noção da concisão leve do texto cronístico, ambos mantêm obsessões (neuroses obrigatórias), ambos publicam no mesmo jornal, ambos escrevem o que lhes apetece (mandamento de qualquer cronista que sabe o que faz), ambos vestem calças e camisa e mudam de roupa interior quando acham pertinente.
Tenho aqui o livro do João. Já passei a demanda contra o politicamente correcto, a defesa obsessiva e sem concessões da liberdade, a desconfiança do “racionalismo” dos “estudos”, a nostalgia epistolar, o riso sobre o ego artístico que se concentra mais no ressentimento do que na obra, os diários de Oxford.
Estacionei na parte das crónicas culturais, “Prazer em Conhecer”. Admito a banalidade da expressão: estou paralisado – eu que já conhecia este registo do João Peireira Coutinho de outros carnavais escritos. E de muitas conversas.
Que saudades tinha de ler alguém a escrever assim sobre cultura. Desde textos a conversar, entre elogios e questões, com o livro de Mario Vargas Llosa, “A Civilização do Espectáculo” (fazendo notar que nessa era do ruído não há que desligar o rádio mas procurar as melhores sintonias), a empatizar com a lúcida auto-depreciação de Thomas Bernhard na hora da vitória, a repensar a forma como viu o Camus que leu na adolescência, a elogiar a digna naturalidade como Hitchens se comportou nos instantes antes da morte, a escolher filmes da década de 2000 (de “A Última Hora”, de Spike Lee, a “Greenberg”, de Noah Baumbach).
Aqui é o escritor que se revela e que acrescenta ao que analisa com frases que não se esquecem. “Só consigo imaginar Sísifo feliz se, no cume da montanha, existir algo ou alguém à espera dele e da sua pedra” ou “Como nos livros trágicos de Conrad, somos todos corajosos, somos todos cobardes. E esperamos humildemente que o destino nunca se lembre de nos testar” e “como todos nós, sou uma fraude que se julga original”.
Tenho aqui o livro do Gregorio Duvivier. Já li as pequenas crónicas-contos delirantes como “Breve História da Internet” e “Werner”, o “primeiro bebê-figurante da história”, a prosa sobre o primeiro dia em que fumou maconha e passou a desconfiar da polícia, os textos satíricos sobre os ultras do Estado Mínimo, todos os outros sobre os incêndios políticos diários no Brasil, outros ainda que sublinham que os primeiros comentários que se fazem sobre as mulheres é “feia. Bonita. Gorda. Gostosa. Comeria. Não Comeria”, as respostas divertidas aos religiosos que criticaram sketches da Porta dos Fundos, o combate a um dos seus alvos de eleição – as alas mais reaccionárias em matéria de questões de costumes – e àqueles que acham no Brasil o racismo, o machismo e a homofobia já terminaram, o gozo com as tecnologias viciantes, um pedido de desculpas por ter elogiado a cidade São Paulo, que ficou ofendida com isso, a defesa, tal como faz o cronista de “Vamos ao Que Interessa”, do humor sobre o fanatismo.
Demoro-me nas crónicas mais íntimas. Aquela sobre o irmão que sofre de um síndrome raríssimo (de Apert), outra intitulado “Meus Pais”, na qual deseja guardar a imagem dos pais, outrora cúmplices e depois distantes, “no palco, tocando juntos – infalíveis”. Um texto-bomba chamado “O Palhaço Grock” no qual confessa que foi Robin Williams quem o fez mais chorar na vida e faz a defesa de um humor com sombra: “Só se faz um samba com tristeza. A boa piada precisa de inteligência e de desgraça (...)”. E remata com aquilo que o comum dos espectadores de shows cómicos ignora: “Uma boa piada pode resolver, por alguns segundos, os problemas do mundo inteiro –a não ser, é claro, os do próprio humorista”. Outro texto que me ficou é “Ator e Autor”, em que Gregorio revela saudades dos tempos em que era só ator de teatro, quando podia guardar as suas convicções, além da bunda”. (“ok, a bunda nem sempre”).
Numa carta imaginária a Auberon Waugh, Pereira Coutinho sintetiza duas evidências esquecidas: “A primeira, que não existem lições: a vida é um caos sereno que vamos enfrentando com a ironia possível. E, a segunda, que uma coluna de jornal é tão digna ou indigna como um romance ou um poema”. Não restam dúvidas. Duvivier carimbaria, com um brinde, as duas sentenças. E eu, leitor, juntaria um terceiro copo ao brinde pelo puro prazer que estas crónicas me deram.
Homem da medicina, Dimas Simas Lopes cumpre uma tradição de médicos de qualidade e sensibilidade humanas e criativas: é um artista. Homem das artes, plásticas e literárias. Este livro é o segundo da sua autoria. O primeiro foi “Sonata para um Viajante” (Calendário de Letras, 2012). Como disse reveladoramente numa entrevista, pôde com esse livro voltar a ser menino.
Dimas é também, permitam-me a facilidade, um homem do coração. Cardiologista, sabe que a medicina não é suficiente para pesquisar tudo o que encerra o coração humano.
O Porto do Mistério do Norte que aparece neste livro já vinha do primeiro. Em muito se assemelha aos seus Biscoitos (Praia da Vitória, ilha Terceira): tem um porto baleeiro e de pesca, é um mistério porque as lavas negras assim o tornam e do norte porque é para esse ponto que está virado.
Antes de mais este é um literário gesto sobre a identidade. Pessoal, humana, cultural, histórica. Esta passagem situa e esclarece: “Foram séculos de palheiros e tectos de colmo e pano da terra para vestir e pés descalços e pés com alparcatas, até aos anos 60 do século XX”. É sublinhado um dado histórico que convém ser lembrado a quem muito teve quando nasceu: a luz, até aos 70, não existia na maioria das zonas rurais dos Açores. E é recordada a “escravatura” e os muitos que fugiram das terras açorianas em direcção a uma desejada dignidade.
É um volume que consagra – fixa - uma determinada terra insular num determinado tempo. De um modo muito próprio, feito do cruzamento de géneros literários. Este é um livro-narrativa mas também um livro-ensaio. Tanto se faz de múltiplas histórias contadas a várias vozes como se desenvolve como reflexão do que passou um povo e do que vive hoje. Povo que não é só o do local – o do Porto – mas também é o do mundo.
As histórias contadas têm sempre o mar ao fundo. Com pescadores e pescarias, caça à baleia, embarcações. E frases certeiras sobre o ambiente que se vive na insula: “A medida da ilha é o mar que se vê da ilha”.
E se este é um livro que evoca um tempo baleeiro e os seus protagonistas, é, sob o ponto de vista da forma como se desenrola, um livro marítimo. Tanto temos momentos calmos e serenamente líricos como por vezes temos vagas que metem respeito.
Há uma corrente narrativa que tudo traz consigo, um fluxo que traz memórias, nomes pitorescos – Chico da Areia, Choco, Mija vinagre, Orelha murcha -, evocações de matanças de porco, filarmónicas, elementos naturais como o cedro e o pau branco, a necessidade de apelar ao divino, expressões muito açorianas como “são danados para comer estes melros” e “era de consolar a vida de um homem”, comidas como torresmos e bolinhos de abóbora. Fundo e forma revolvem-se como as areias na zona de rebentação. Um modo de contar muito fluente, revelador de leituras muitas e de uma mão segura e talentosa.
A certa altura (pág.19) o autor situa o leitor que ainda se habitua a nadar neste mar alto: “O meu nome é Tónio, vivo no Porto do Mistério do Norte, mais ou menos no meio do mundo”. É a Tónio que se contam as histórias. Constituindo-se como personagem fundamental, também pode ser cada um dos leitores que partilham do sangue de referências que percorre este livro.
A sanguínea metáfora não é gratuita. Estamos na presença de um homem de coração e do coração, muito para além do ofício. É ele que a certa altura escreve: “Pelo coração passa inteira a nossa vida”. Tudo se complica no caminhar dos dias, segundo o autor, quando se tem mais olhos do que barriga, quando se é obrigado a ir para uma guerra sem sentido (no caso na Guiné), quando os pobres só são lembrados em tempo de eleições.
O humor também passa por aqui. “Porto do Mistério do Norte” é uma viagem ao coração do humano e no coração humano há composições graves (e refira-se de passagem que o autor é um melómano devoto) e outras mais leves e primaveris. Um pai, habituado à vida marítima, na altura em que segue para o continente europeu, assume a sua funda segurança desta forma pitoresca: “Se nunca me perdi nas ruas do mar, não me ia perder
em Paris”.
Há muita vida física – no sentido, se quisermos, muscular do termo - nesta narrativa. Um universo que tanto se faz do combate com os elementos naturais, nomeadamente na baleação, como da simples “pancadaria” entre os homens da terra e alguns americanos da Base das Lajes. E há também um sentimento continuado e aprofundado de regresso à terra, de retorno aos cultivos mais primordiais. O cultivo da vinha, por exemplo. A produção de vinho. É essa a saída de um universo cada vez disperso e desatento onde subsiste a vontade de poder e de poderes.
E há elogios que se distribuem pelos parágrafos. O elogio ao feminino – há um terno cuidado quando são nomeadas as mulheres. Aliás, “Porto do Mistério do Norte” termina com a palavra “mulher”. E antes há um melro “doido para namorar”, fazendo lembrar no melhor dos sentidos o atrevimento verbal de outro autor nascido no arquipélago açoriano, Pedro da Silveira. Um elogio à herança que se recebe dos antigos – pai e avô. E, por fim, também um elogio vasto e merecido ao que fundamenta esta colheita rara. A gratidão para com a arte como prática livre de condicionamentos. “Tudo nos podem tirar, só não conseguem roubar a nossa capacidade de fantasia”.
Texto de apresentação de “Porto do Mistério do Norte, de Dimas Simas Lopes (Companhia das Ilhas, 2015)
Sim, sei que estamos todos ocupados com Marcelo mas o que preocupa o cronista no momento é este assunto: há cada vez menos informação nas internetes. Grande parte de nós passa os dias nas redes sociais onde com frequência não se distingue o que é forjado do que é facto. Esta campanha eleitoral foi um exemplo maior do fenómeno.
Habitamos cada vez mais no mundo virtual da colagem, do corta-e-cola, da legenda inventada sobre o rosto de uma figura pública, do obituário de alguém que morreu há cinco anos, da notícia desmentida que fica por desmentir por quem a exibe perante a sua comunidade de amigos salivantes.
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