Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Para um juiz do Tribunal de Relação de Lisboa, o Ministério Público, no caso Sócrates, "comporta-se como o viajante que perante a largueza da foz do rio não cuida de descrever o percurso desde a nascente". Temos poeta.
O texto do juiz é um convite para fazermos, no mesmo tom lírico-ambiental, a descrição das já narradas ocorrências de uma história que, mais do que ter a complexidade de uma tragédia de Shakespeare, assume a simplicidade de uma fábula de Esopo. Façamos um exercício poético semelhante a partir do que se sabe. Entre aspas, para ganhar dignidade.
"No deserto que se segue aos jardins do poder, um homem continua a necessitar da folhagem necessária para ser feliz. Não basta uma dúzia de folhas. É preciso uma floresta para alimentar o seu coração de animal feroz e faminto.
Quando se julgava um pinheiro isolado nas escarpas do mundo, eis que surge um Deus amigo que lhe envia o húmus decisivo a uma existência feita com os prazeres de Baco, vividos na Cidade Luz.
Mas a inveja amesquinha os espíritos terrenos e o mesmo ser que tinha recebido a verdejante graça em generosos movimentos é acusado publicamente de prevaricações várias. Acaba por ser enviado para uma gruta da qual, assegura, só sairá quando lhe garantirem a mais tropical das liberdades. Faça-se justiça."
(Publicado na revista Sábado)
País poema homem
a eternidade é não haver papéis
que alegria ser poeta português
Portugal fica em frente
Eu vinha para a vida e dão-me dias
A natureza é certo muito pode mas um homem de pé pode bem mais
Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo/ como pretender ter resolvido o mínimo problema?
E as ideias, que só servem para dividir?
Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado.
Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado.
Compro um bilhete de Comboio para ver quantos são hoje.
Não costumo por norma dizer o que sinto/ mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa.
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros.
a minha grande esperança é o café
Nos dias de hoje ou nos tempos antigos/ não preciso de menos que todos os meus amigos.
Somos crianças feitas para grandes férias.
temi amei preocupei-me com problemas fui feliz vivi a vida emocionei-me
Falo muito de mim e de muitas maneiras/ algumas delas transpostas fantásticas fingidas
mesmo ao falar de deus eu me esqueço de deus
A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar- e de se ficar – pelas palavras.
Ninguém sabe andar na rua como as crianças
Vivemos convivemos resistimos
Ó minha vida esse processo que perdi
Li por exemplo a Bíblia li pessoa e pertenci à igreja ocidental/ e tenho de reconhecer que não sei nada do natal
Meu único país é sempre onde estou bem
O meu país são todos os amigos/ que conquisto e que perco a cada instante.
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia/ mas o país que tinha já de si pequeno/ fizeram-no pequeno para mim.
Basta a cada dia a sua própria alegria/ e é grande a alegria quando iguala o dia
Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais
"A gente conhece os chatos já prontos, não em formação. Talvez houvesse tempo de recuperá-los para o convívio diário e prazeroso se fossem identificados prematuramente e tratados. Está aí um ramo virgem da psicologia".
Ivan Angelo
Estou de viagem. Parei numa estação de serviço. Tenho a SÁBADO em cima da mesa e dou uma vista de olhos pela revista. Estaciono por acaso no meu artigo. Vejo-me e pergunto: "Quem é este tipo?" Ah, é o cronista, esclareço. O marginal ameno. Mas podia acrescentar: é o produtor de conteúdos.
Hoje uma pessoa não escreve umas coisas. Produz conteúdos. Há muito disso na net. Mas não só. Nas televisões, nas rádios, nos cartazes, em tudo o que seja território da comunicação. E o que de tão elevado faz o produtor de conteúdos? Enche de conteúdos aquilo que não os tem.
Gostaria de ouvir José Cardoso Pires – de quem a Relógio D’ Água acaba de reeditar a prosa desbastada – a responder à pergunta: o que é que você, produtor de conteúdos, anda a produzir agora? Calculo o que diriam Assis Pacheco e Alface dessa modernice tão emotiva como uma caixa multibanco. Nada de particularmente reproduzível numa revista familiar.
Um argumento para um filme, uma peça de teatro e de jornalismo vão perdendo o género. Agora são conteúdos. Um livro de poemas é um livro de conteúdos (sim, não dá para encantar ninguém numa conquista de balcão com a conversa "publiquei uma antologia de conteúdos"). Está para chegar o Nobel dos Conteúdos. E assim vamos, neste mundo indistinto, sem conteúdo nenhum.
(Publicado na Sábado)
Um cronista precisa de crónicas. Tenho-me feito rodear das de Ivan Angelo, que me foram trazidas do Brasil pelo Humberto Werneck numa passagem por Lisboa. E pelas do próprio Humberto, que as continua a publicar no Estadão. Dão-me aquilo que é raro encontrar nos jornais e revistas de cá: a vontade de capturar por escrito uma brisa, um costume, a beleza de alguém ou de um momento. É a conversa.
Só um país que não leva a sério o sentido de humor usa com tanta frequência a palavra "piadola".
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.