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Cuidado Com o Rapaz

por Nuno Costa Santos, em 24.04.15

 O Escritor

 

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Há escritores de dois nomes, escritores de três nomes, talvez de quatro nomes e há Alface. Não Al Face, designação que podia ser um suspeito nickname de rede social para a CIA. Alface, vegetal tornado literatura, narrativas de delírio e desconcertos feitas de fraseado impuro, entre o dicionário erudito e a gramática de petisco.

João Alfacinha da Silva escolheu para o cartão de visita literário um arriscado nome de mercado. Pode ser que este tempo biológico o faça ser mais visitado, trazido para casa num saco reciclável. Aconselha-se.

Na Liga da Literatura começou por escrever romances em parceria com Manuel da Silva Ramos (“Os Lusíadas”, “As Noites Brancas do Papa Negro” e “Beijinhos”), vocação rara em contextos onde o ego prefere fazer as jogadas a solo no terreno de jogo. A trilogia, a que deram o nome de TUGA, é uma meditação ficcional sobre os desatinos históricos nacionais.

 

O primeiro título, sobre o movimento de expulsão, de descoberta e saída para o mundo, foi publicado pela Assírio e Alvim, em 1977, com Manuel da Silva Ramos regressado de um exílio francês. O segundo, sobre o estar e respirar “lá fora”,  e o terceiro, sobre o adeus ao Império e o regresso “à fonte matricial de retornados e emigrantes”,  foram editados pela Fenda, mítica hoje e sempre.

Só para situar o leitor menos familiarizado com o tipo de delírio criativo do primeiro título pode citar-se o início, assim naquela: “é e ele, eia ei-lo,eaovooooo!, (ensina o primo do enarr.), el embus cadecito, ecbem, ejaculado e extriste (...)”. Esclarecido? Não? Continuemos a caminhar pelo livro dentro: “Etc? Leiam os Lusíadas./Etc? Ignorem-no. Ignorem-no./ E sonhem depressa com uma mulher./A literatura?/ Trampa, trampa, trampa”.

 

Pelo meio – onde quer que fique - há provocações de quem se está nas tintas para as consequências humano-culturais: “Algumas ideias de livros para alguns escritores portugueses inteiramente gratuitas com a única reciprocidade de me enviarem pelo Natal as boas-festas: ‘O Anticiclone dos Açores’, de Vitorino Nemésio, ‘Tratado do Belisco’, de José Cardoso Pires, ‘Os anestesistas também morrem’, de Fernando Namora, ‘Viagem a Disneyland’ de Urbano Tavares Rodrigues, ‘Descrição da famosa embaixada enviada pelo ilustre conquistador da Índia D.Manuel ao papa Leão X no ano de 1514’, de Jorge de Sena...”. 

 

Houve quem tivesse caído do cavalo durante o acto da leitura da obra. Arnaldo Saraiva ditou que era “das mais corrosivas, joyceanas, imaginativas da nossa moderna literatura”. Há uma história com Antonio Tabuchi, contada num Almanaque Fenda.  O italiano declarou o namoro com o livro e mostrou-se disposto a falar do mesmo em comemorações camonianas. Mas, em apontamento humorístico, confessou que o melhor era inibir a vontade porque tinha família e um menos cómico medo de perder o emprego.

 

Almeida Faria começa deste modo inequívoco um artigo que escreveu para a Colóquio/Letras,n.º47, de Janeiro de 1979: “’Os Lusíadas’, de Manuel da Silva Ramos e Alface, publicado em 1977 por Assírio & Alvim, é um romance que, noutro país, seria assinalado, discutido, estudado, justamente considerado como algo de anormal. Mas que fazer se a terra dos Lusíadas caiu em profundo coma e já nada a abala?”. Nesse texto também sublinha o óbvio – a impossibilidade de ler o livro de uma assentada – e refere que o resultado final está entre o “excepcional” e o “chato”, “divertido” ou “irritante”, nunca se deixando escorregar para o “bem escrito” e revelando-se incapaz de “’agarrar’ a atenção de um qualquer fôlego fraco”.

 

 “As Noites Brancas do Papa Negro” prega outras partidas e continua num tom desbragado, experimental, antropológico-radical, além da Taprobana. A mistela de referências culturais, familiares, nacionais, internacionais, sexuais é tanta que só experimentando. Não há descrição possível em qualquer wikipedia. Seria bom alguém ler isto em voz alta num espectáculo in vivo, literário stand-up sem ser para meninos.

 

Num jorro verbal que tanto pode ser surrealista como jazzístico como punk como absurdo como dadaísta como lúdico como divertido como à desgarrada como sabe-se lá o quê, são oferecidos em bandeja acepipes linguísticos que não lembram ao mais calvo dos leitores: “Migraças da economia melancólica de fígado às vezes riam quando comiam a sardinha crua penitência maçónica daqueles que sem caretas pegavam na pazinha luio de popelinas e de empregados de fomércio”. Aguentem-se. Vem mais uma entremeada para a mesa: “Entre as vinte portugonas que competiam sem discussão ganhava sempre em espécie o arreliado que fornecesse o número de tresmalhados assim como o nome do hotel os chamiços que tinham tirado a terminação declinando a rua ou a marca do relógio do último esputado recebiam como consolação um felatio à borda duma falésia”.

 

Na cascata febril vão sendo evocados aqui e ali sítios lusos (Almeirim, Covilhã, Odivelas, Alcanena), nomes portugueses (Calisto, Fortunato, Marcolinho), contam-se pequenas histórias de personagens, logo sabotadas por caminhos inventados para uma pessoa tropeçar: “História do grego patim amante de asmáticas”.

É como se Alface e Manuel da Silva Ramos se tivessem encontrado num bar e dado início a um desafio insano, afirmando em voz alta, com duas ou três imperiais na mão,  tudo o que lhes vinha à mona. Mas não é isso,  doutores: há aqui muito nervo literário, palavreado mui bem cozido, malabarismo de quem comanda, voltas e contra-voltas de quem sabe que está a mandar petardos em várias direcções com uma arma que domina.

 

Jorge Listopad fez nota sobre este livro e arriscou chamá-lo de “joyciano sem metafísica social, mas de física social”. Diz que “é o ritmo o que informa o sentido dos episódios apenas esboçados, obsessionalmente condenados à destruição semântica da narrativa, ao banhar essa liberdade louca e necessária (e libertinagem lato sensu) de um à-vontade incomum que teria apenas Ruben A. como competidor nas letras portuguesas”. João Alfacinha da Silva, quando se referiu à trilogia TUGA, tirou o irlandês da tasca para afiançar que é de gente portuguesa, do seu carácter e da sua Língua que tratam estes literários dossiers.

 

Mais tarde, em entrevista a Maria João Seixas, confessou a inspiração: “Os meus primeiros livros (escritos em parceria) eram mais radicais, ao nível de uma linha joyceana de trabalhar as palavras ao limite, quase na ordem da antileitura”. Noutro texto, apresentado num encontro na Madeira, falava na trilogia como “três pedrinhas lançadas ao poço da modorra literária nacional” que nunca farão parte das “obras recomendáveis em antologias de prosa pátria”.

“Beijinhos” é, no palavreado de Alface na entrevista a Maria João, “o adeus, o rebarrigar outra vez, ditado pelo fim do Império, pelo acabar da aventura planetária, com o consequente regresso à fonte matricial de retornados e emigrantes”. À moda de dois comparsas literários já bastamente entrosados. Além disso, consiste numa homenagem sem pompa à Língua Portuguesa através de um termo,  “mais que ‘mot-valise’, uma palavra-baliza na boca de toda a gente”. E, mais uma vez, é uma glosa-celebração-paródia aos Lusíadas camonianos.

 

“Bíblia do Caos” muito cá da casa,  montagem libertária de um Portugal visível, de personagens urbanas e rurais, e de outro que não se vê mas que acontece para além dos mornos costumes, com vastos “colhões”, “conas” e “fodas” que não vêm nos editais da junta. Obra para oferecer a namoradas, amigos chegados, adjuntos ministeriais e gatos de facebook. Que começa com um mimo aos próprios autores: “Este romance é dedicado ao Manuel da Silva Ramos e ao Alface sem os quais ele”. E que resolve em poucas linhas a sinopse do empreendimento: “Farto de África/Ao fim de 50 anos/B regressa a/ Portugal às costas/De 10 mil pretos”.

 

Como é que se escreviam estes romances a quatro mãos? Manuel da Silva Ramos, na altura exilado, explica: “Fazíamos um esquema da história do romance. Dividíamos tarefas e cada qual escrevia para seu lado”. Em 1973 escreveram na mesma casa. Alface passou dois meses em França com Manuel para escreverem “Os Lusíadas”. À tarde encontravam-se para apresentarem trabalho e reverem os textos. Segundo Silva Ramos, a escrita poderosa e única de Alface está patente na Trilogia TUGA. “É esse o seu legado literário”, diz. E acrescenta ainda, carimbando as palavras de Almeida Faria, que “em qualquer país decente, a nossa trilogia representaria um grande momento literário”. Vasco Santos, editor da Fenda, classificou-a deste modo no texto que escreveu para o jornal Público um dia depois da morte de Alface: “’Infausto’ monumento à língua e ao carácter de um povo (...), homenagem e meditação ficcional ao ‘Portugal à solta’ e atletismo subversivo sobre a pátria que ri, a pátria que chora, como diriam os autores”.

 

Há um episódio que convém contar sobre a edição de “beijinhos”. Vasco pensava que Alface não existia, que era uma invenção literária para gozo público. Afinal o bicho tinha existência, física e moral. Soube de tal extravagância ao encontrar-se com ele junto à Assírio & Alvim, na companhia de Manuel Hermínio Monteiro. Hermínio alegou não ter vagar editorial para uma obra com tanto quilo de prosa e Vasco Santos chegou-se à frente. Sem ler o livro. Já havia provado os dois primeiros da trilogia e carimbou decisão imediata. Ia para os Açores no dia a seguir e não havia tempo para se sentar na poltrona a capturar os pormenores evocados. E o livro, passados uns mesitos, lá foi publicado, com honras de festa no cabo-verdiano B.Leza seguida de beijoqueiro bailarico.

 

Depois, como se diz nas canções, veio a carreira a solo. Dois livros de contos delirantes. Mas não são só as histórias pícaras que marcam a literatura de Alface. É a escrita também.  A escrita de Alface é rara. Tem um lado vegetariano. Apresenta-se sem gordura. É económica num país que desperdiça até palavras. Desde 2006 foram compiladas numa edição da Fenda chamada “A Mais Nova Profissão do Mundo” “Cuidado com os Rapazes”, livro-conselho sobre a rapaziada que o livro promete revelar, e “O Fim das Bichas é o Princípio das Filas”, provérbio-provocação à vizinhança.

 

“Cuidado com os Rapazes” (que, sozinho, teve edição da Assírio & Alvim) traz uma confraria de histórias tão delirantes como bem esgalhadas sob o ponto de vista literário – a frase viva e adequada, a adjectivação certeira, um sentido narrativo que, com o seu perfume experimental e uma voz sterniana (ele que gostava tanto da Irlanda e tinha um ascendente irlandês) a dialogar com o leitor, deve também muito aos melhores e ancestrais contadores de relatos lusos de séculos vários. Se quisermos: dentro do desvario de temas e de figuras e de ocorrências não deixa de haver uma modalidade narrativa clássica de as apresentar, bem distante da usada no furioso sortido da Trilogia TUGA.

 

Comunicou ao mundo o seu cozinhado manifesto literário: “A escrita tem de derrubar as pessoas do cavalo. Do cavalo do quotidianozinho, do cavalo de quem pensa já ter lido toda a grande literatura, desses cavalos”. Fazia uso confesso da violência estilística. Apoiava-a. A boa escrita, para Alface, é aquela que dói, mesmo quando faz rir. “A escrita tem de ser um despertador. Tem de provocar os outros, provocar reacções nos outros. Não, não poupo nos murros no estômago, mas não o faço gratuitamente, não provoco pelo princípio, no sentido escatológico. Penso que tenho um bom sentido da ironia, e a ironia tempera o murro no estômago”.

 

Histórias sobre velhos que dão milho aos pombos e que morrem envenenados entre a pombaria, episódios de homens cuja profissão é levar bêbados para casa ajudados por duas alemãs, aventuras de um avô que como muitos, “desfazendo-se em respeitosa lubricidade”, era “perito em desaustinar as donas de casa e respectivas serviçais”, granadas verbais que começam com fraseados como este, “Despejou-me as mamas em cima. Deixa lá não caem”, descrições de voos onde se sentam - ponham aspas nisto, um casal de noivos (excitações fortes em complemento à lua-de-mel), um argentino criador de gado, um psiquiatra com cara de polícia (a inversa deve ser verdadeira), duas velhas que não param de rir, um tarado, dois japoneses com uma câmara escondida no maço de cigarros (os alemães é nas canetas, os franceses no relógio) e – por Deus – um padre católico.

 

E narrativas muito curtas, umas com nomes de pessoas (de Olga a João Maria); outras com nomes de lugares (de Coimbra à Boa Hora). As histórias têm inícios ora mais comuns ora mais extravagantes mas todas, a dado passo, condimentam-se de um molho inesperado. De irónica vigarice onde nunca se sonhou marinar. Um cheirinho. Há gente que se manda de um segundo direito, aterra numa Pastelaria Primavera e, acabando por cair numa cadeira vaga junto a uma norueguesa com quem casa, passa a viver em Oslo. E, num registo a namorar o surrealismo, um peixe-gato que perde as alianças do engate e “é vê-lo aflito a procurar águas mais mornas”. O ambiente é o mesmo das histórias mais longas mas estas podem ser bebidas como quem manda um shot de prosa  -  culta e mundana  - ao balcão.

 

“Cuidado com os Rapazes” teve algum impacto crítico. Fernando Venâncio, no Jornal de Letras de 30/08/95, assinou uma coluna na qual faz um inevitável paralelo entre as histórias de Alface e as de Mário-Henrique Leiria: “Alface visivelmente possui o que Leiria tão bem demonstrava: uma impiedosa, e tocante, percepção estética do absurdo”. Venâncio faz uma escolha: “’Pombinhos’, a mais conseguida das histórias longas de ‘Cuidado com os Rapazes’, aí está para prová-lo”. Paulo da Costa Domingos, no Expresso, também se refere a uma “paródia” com uma tradição presente na prosa do autor dos “Contos do Gin-Tonic”. Escreveu: “Trata-se de um divertimento, sem metáfora, um comboio-fantasma onde ‘ninguém se magoa. Isso fica para depois’”.

 

 De facto, em termos de escritas portuguesas, não há muitos parentes possíveis mais ou menos recentes. Mário-Henrique Leiria é um deles. Alexandre O’Neill e Assis Pacheco, talvez outros. Mário de Carvalho, quem sabe. As referências  confessadas de Alface, que podia ter cartão de leitor frequente, eram variadas e iam desde Gombrowicz até Cortázar, passando por Jorge Luis Borges, Juan Rulfo e Max Aub.

 

A promoção do livro incorporou um episódio divertido que podia ser, ele próprio, um conto de Alface (aliás, muitas das histórias vividas pelo escritor tinham esse potencial). Santana Lopes, na altura presidente do Sporting, ao receber um autocolante de divulgação dentro de  um envelope branco – justamente com a sentença “Cuidado com os rapazes” – assustou-se e fez uma conferência de imprensa a comunicar ter sido ameaçado, acrescentando que iria entregar o caso à PJ para, através da análise das impressões digitais, localizar os autores. Alface, de imediato, escreveu-lhe uma carta a assumir-se como autor do gesto terrorista. O episódio teve várias consequências. Releve-se duas. O livro foi para os tops de vendas. Pinto da Costa aproveitou para se meter com Santana, deixando-se fotografar com a perigosa obra nas mãos.

 

Depois vieram as bichas. “O fim das bichas” (1999), novo livro, escrito ao abrigo de uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura. Para Alface, significava o princípio das filas. Pelo menos no reduto sempre equívoco do título. Entre as melhores investidas encontram-se “A Vida em Fogo”, que começa com uma frase seca, isolada. Tudo diz: “Todos temos saudades do Pires. As noites são uma merda, sem o Pires”. O Pires que era um dos daqueles enormíssimos escritores que nunca havia escrito uma linha. Quando, depois de estações de ausência, o Pires voltava – tope-se a límpida perfeição deste parágrafo – “as portas eram fechadas, os fregueses corridos, e o Pires pontificava, navegando livre em rios de tinto, como nós no curso bíblico das suas palavras. Noite de estreia. Só para os melhores”. “Mesas Muito Juntas” é um exercício O’Neilliano de estender um diálogo em sete páginas, uma conversa que parece feita de muitas conversas ouvidas.

 

 O narrador das histórias aparece aqui e ali, deixando um comentário, curto. “Dafundo”, do primeiro livro, inaugura-se assim: “Sempre quis escrever uma história que começasse por ‘Era uma Vez’. Ainda não é desta”. Em “As Coisas Mudam”, do segundo, um homem que se tenta suicidar e a quem os colegas perguntam quando é que vai arriscar nova tentativa, o narrador arrisca comentar: “De um escritório espera-se tudo”. Também há a procura da frase, também curta, a encerrar algumas histórias. Atrevidos remates como “Eu acho” ou comentários de esquina como “lá isso”.

 

Nos dois livros, uma ou outra vez, Alface usa sem medo e com originalidade o adjectivo, o que dá origem a achados: “Respeitosa lubricidade”, “muralha monossilábica”, “ortopedista bolachudo”, “cuzinho repolhudo”, “pálpebras atónitas”, “realíssima putéfia”, “parentes mais tromebundos”, “angelical ganido”. Mas, não se julgue o contrário, também há frases feitas, aparentemente usadas com consciência. Como se Alface não quisesse perder o diálogo com o quotidiano e o falar das pastelarias. Cada texto é um cozinhado – e, ao que se sabe, João Alfacinha da Silva sabia da poda gastronómica, em especial da alentejana.

 

O mesmo acontece nos pequenos  "Um Pai Porreiro Ganha Muito Dinheiro"; "Uma Mãe Porreira É Prá Vida Inteira", "Filhos Assim Dão Cabo De Mim", "Avó Não Pise o Cocó" e a "A Prima Fica por Cima". É uma história dividida nesses cinco livros, protagonizada pelas mesmíssimas personagens e que veio depois a sair no Círculo de Leitores, num só volume, com o título "Uma Família Sem Mestre".

Alface, a edições revistas e aumentadas, preferia edições revistas e diminuídas. Nas suas histórias não há ganga. As palavras, escolhidas com esmero, vivem de uma forma não só condensada como tensa (na já referida entrevista declarou sem hesitações: “prezo muito uma escrita com dinamite dentro, exigente de um ponto de vista formal”). Estes livrinhos são um exemplo disso. “Nino era um miúdo muito gordo, mas que também sabia ser magro”. É de frases como esta que se condimentam estas pequenas aventuras famíliares com o sr.Branco e os filhos: além do citado rapaz, Dinho, Zinho, Tou, Bou e Piou.

 

A ideia foi a de cativar as gentes, “dos 12 aos 80 anos”, para a leitura. Já agora, de uma forma estimulante e lúdica, de um modo que as fizesse rir e comover, que as surpreendesse pela imaginação e pela criatividade. “Caso contrário, se os jovens forem obrigados, em casa ou na escola, a ler textos que os não estimulem, que os queiram colonizar de bons sentimentos e acções pias, lá vai mais um possível leitor por água abaixo”. E o que conseguiu foi o que Maria Manuel Stocker classificou, na revista Xis, de 8 de Abril de 2000: “Um hipotético encontro de Lewis Carroll com Jacques Tati e os irmãos Marx”.

Cristina A. Serôdio, professora de Português e Literatura Portuguesa na Escola Secundária António Damásio, divulgou a obra de Alface quando passou como docente pela Faculdade de Letras de Lisboa. Chama a atenção para uma circunstância relevante: a prosa de Alface é simples apenas na aparência. “Exige muito do leitor. Espera que seja sabedor, inteligente, capaz de interpretação, de riso e de preencher os vazios que o texto deixa ao seu dispor”. Verdade. “É denso o que escreve”. O leitor é surpreendido pela “inverosimilhança das intrigas, das personagens, das coisas, e pela poderosa linguagem que nos põe à prova com virtuosismo. E sempre confrontado com a ironia, a graça”. Há uma questão escandalosa no texto: sente-se nele o prazer de escrever, a pica de desenhar literatura rigorosa e reinadia.

 

Faz um relatório certeiro de virtudes quando se refere à prosa alfaciana. Algumas das ricas anotações sobre passagens dos cincos voluminhos.  Criam-se - sem pudor - palavras, trocando-lhes a classe: verbos com adjectivos, adjectivos com verbos, adjectivos com nomes (“A juventude presente boquiabria-se e era um pau”, “o desopilante espectáculo”, “Na água piscinenta”), usam-se adjectivos inesperados que criam efeitos de graça e riso (“as mais empinadas universidades”), brinca-se com expressões e ditos comuns e espera-se saber e saber literário do leitor (“A vizinha da avó é ‘a octávia mais abaixo’’), fazem-se comparações com imagem pouco literárias (“o balofo deu de perceber a alegria que os pudins de gelatina sentem ao sê-lo”), a narrativa é interrompida por máximas e interrogações de vida, com ironia, comicidade, verdade (“‘ó pai quando é que a mãe nasce?’ perguntam os filhos desejosos”). E há lirismo e melodia. “A escrita de Alface é ritmada, musical. E afectuosa, com momentos de uma extrema doçura”.

 

Nestes fantasiosos livros encontra-se, segundo Cristina, uma forte sabedoria que adivinha um outro mundo, uma outra existência: uma liberdade individual, mesmo dentro da família. Nas chegadas e partidas surpreendentes das personagens amadas mas livres. Nos desenlaces amorosos que recria. Nas comoventes relações felizes que antevê – entre homens e animais e crianças e objetos. Nos momentos fabulosos, imaginários, alegres, musicais que celebram a infância. Uma receita para a vida?, pergunta.

Após tanta história curta, tanta fábula urbana e rural, chegou a altura do romance. “Cá Vai Lisboa”, que começou por ser uma ideia para uma sitcom, é um romance à Alface. Com uma história localizada no universo político/autárquico português subitamente inquietado pela decisão de um clube gay, o Club Rosa Tatuada, ir desfilar nas marchas populares, em representação do bairro de Alfama. Uma rambóia de obra romanesca, portanto, feita de peripécias como o concurso de lançamento de sardinha e a mudança sexual de um presidente de uma agremiação gay após excitante actuação das mãos de uma tailandesa.

 

“Há um livro do Nuno Bragança em que ele usa uma expressão dos ingleses onde se diz que uma pessoa só sobrevive bebendo. ‘You only survive by getting drunk’. Ele diz isso em ‘A Noite e o Riso’. Eu poderia dizer que aqui uma pessoa só sobrevive se souber rir. Em Portugal, um tipo que não saiba rir está condenado”. Palavras de Alface que encontrou na escrita de “Cá Vai Lisboa” uma modalidade de sobrevivência ao nacional- absurdismo.

Torcato Sepúlveda, no artigo “Bichas para a Câmara”,  publicado na “Grande Reportagem”, a 18 de Setembro de 2004, tratou o livro nestes termos: “Nunca Lisboa foi descrita com tanto humor como neste romance de Alface, ‘Cá Vai Lisboa’. Lisboa excitada entre dois mundos, disse o jornalista e crítico: o da tradição e o de certa modernidade parola que imita o estrangeiro e lhe desconhece os valores. “Para descrever sociedade tão pedestre – com bichas loucas e políticos espertos -, Alface utiliza toda a gama das figuras de estilo eruditas; mas lança mão também de provérbios, frases feitas, anedotas, palavrões. Girândola estilística que abre o sentido da palavra até ao non sense”.

 

Por essa altura, a revista de domingo do Correio da Manhã mandava esta: “Aviso à navegação: Alface é muito provavelmente o mais engraçado escritor português da actualidade”.  Os jornais iam fazendo a justiça de assinalar não só o pitoresco da história como a casta superior da prosa. Diogo Pires Aurélio, em artigo publicado no Expresso em Agosto de 2004, depois de notar que aos poucos a escrita do autor já ganhava, além de estilo notório,  o corpo de obra, escreveu que “se quisermos encontrar uma genealogia para o romance de Alface, receio bem que tenhamos de recuar muito para lá do romance burguês e ir até ao barroco e ao picaresco”.

Sobre o livro, Alface, na primeira pessoa, em entrevista a Sarah Adamopoulos, “Notícias Magazine”, de 20 de Março de 2005: “É uma cidade ficcionada o que está neste livro. Não quis fazer sociologia, não pretendi chatear os gays ou as lésbicas, estou-me nas tintas, acho que cada um deve fazer o que bem entende com o seu corpo e a sua sexualidade. Também não quis moralizar a classe política. Não me atrapalha muito a roubalheira. Sim, o ‘esquemático’ é um bom tema ficcional, mas de resto o mais que posso fazer é votar de vez em quando como qualquer português e, evidentemente, escrever. Mas não escrevo um texto destes para tornar Lisboa mais habitável ou o país mais interessante. Limitei-me a fazer um romance, esperando que quem o leia encha o papo”. A rir-se dos outros? Não, não bastava ser risonhamente moralista. “A rir-se de si próprio e dos outros”.

 

 

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O Homem

 

João Alfacinha da Silva nasceu no dia 24 de Março de 1949, em Montemor-o-Novo, no número 4 da rua do Poço Tapado, hoje destinado a serviços camarários. Dos pais montemorenses muitos se recordam com pormenor. Vicente Pires da Silva, médico local muito famoso, director clínico do Hospital Infantil São João de Deus, filho de um – também ele conhecido - merceeiro chamado Eurípedes. E a mãe, Rosa Maria Alfacinha da Silva, descendente de uma família ligada ao negócio de azeite e cereais, e ao que se sabe cozinheira de mão cheia, de deixar qualquer um de tacho vazio.

A explicação para o uso de Alface como nome literário tem raíz na adolescência, altura em que foi alcunhado dessa forma nas suas andanças juvenis. Sem aparência de melancolia comentava que era assim que amigos, familiares e conhecidos o chamavam “com a maior das liberalidades”.

No restaurante do Hotel Monte Alentejano, Vítor Guita, um dos seus grandes amigos de juventude (nasceram no mesmo ano, com um mês de diferença), lembra-se do seu companheiro “João Carlos”, capaz das melhores notas, da menos óbvia das caligrafias e das maiores travessuras.

Ambos frequentaram o mesmo externato de dura disciplina, rapazes para um lado, raparigas para o outro, a autoridade no meio. Ambos jogaram à bola no Rossio de Montemor. João Alfacinha da Silva, rapaz dado ao desporto (“era dos alunos o único que conseguia fazer o Cristo na argola”), já mostrava o atrevimento que mais tarde praticou na escrita.  Guita condensa o género numa frase: “Metia o pé onde os outros não tinham coragem”.

 

Depois da escola João costumava parar nas papelarias para espreitar as aventuras de Salgari e umas cobóiadas várias e vagabundas. Mas também podia juntar-se à malta vadia, aquela que caminhava nas margens do Almansor, a escola de natação da rapaziada local. Os seus lugares em Montemor eram contrastantes: o rio, o Rossio, a Sociedade Círculo Montemorense Pedrista (frequentada pela burguesia média-alta), a Sociedade Carlista (de vocação proletária) e o Clube (lugar das elites familiares locais).  Começava aí a sua vocação eclética e a necessidade de vaguear.

 

 A Montemor que lhe ficou dos verdes anos estendia-se em fragmentos, imagens e cheiros: um ar puro e curativo, o pôr-de-sol de Verão visto de uma varanda de granito, o caminho até ao castelo, o campo de futebol com uma árvore no meio onde as equipas faziam tabelinhas, os bailes adolescentes nos clubes, o cinema ao ar livre onde o embrulhavam com jornais para o proteger do frio, as árvores de dióspiros do jardim da casa dos pais.

 

Ao ouvir-se o modo desabrido e picante com que um homem conta histórias num café em Montemor é inevitável pensar-se que o humor de Alface e o seu desassombro verbal, que também se metia com alguns marialvismos e ostentações locais, tem a ver com o Alentejo e com as suas gentes. Há humor alentejano nalgumas das suas histórias. Não o das anedotas – as que começou por definir num dicionário sobre alentejanos que fez para o Círculo de Leitores deste modo: “A par das ‘loiras’ e dos ‘pretos’, os alentejanos são o alvo (muitas vezes feliz, condescendente, amigável, ou simplesmente desengraçado e estúpido) preferido desse humor nacional em pastilhas de boca em boca’”. Mas o do divertimento com a vida, as suas ribaltas e misérias. O da pequena história rocambolesca, o do episódio que se partilha à mesa mas que também se pode descrever com um português degustado. Em entrevista a Tiago Salazar dada no final dos ano 80, explicava: “Qualquer alentejano tem um bom sentido de humor, faz parte da antropologia. Isso explica-se com todos os povos oprimidos – polacos, judeus, irlandeses. O humor é a maneira mais acertada de transcender o real”.

 

A partida de João para Lisboa – para o Liceu de Oeiras -  separou-o fisicamente dos amigos. Continuaram no entanto irmanados por interesses culturais. Foi através de Alface que Victor Guita, na altura pouco politizado, recebeu livros de Bertold Brecht. E, no reduto artístico, de Stanislavski. Por desígnio paterno, a primeira porta académica de João Alfacinha da Silva foi Direito, na Faculdade de Direito de Lisboa, estabelecimento de ensino onde, durante os três anos que por lá andou, lucrou pouco em termos de sapiência mas fez amigos grandes. Andou mais pelo bar de Letras do que pelas prelecções jurídicas e acumulou essas estadias com antropológicas saídas por Lisboa à noite. Depois foi para Psicologia (ISPA), curso de que também, mui psicaliticamente, desistiu e onde, nas suas satíricas palavras, à época “abundavam católicos progressistas e seminaristas com grandes sapatos”.

 

Segundo alguns amigos, tinha nos anos de faculdade um humor imaginativo e solto mas também, à conta de uma doença reumática, era um pouco azedo, característica que mais tarde assumiu ter exibido e que foi abandonando em benefício de um olhar mais clareado sobre a existência, aqui e ali compassado por necessárias ironias e obrigatórios sarcasmos.

 Silva Ramos, que se tornou seu comparsa literário em 1966, achou-o logo um companheiro ideal: “Era um rapaz inteligentíssimo, que já tinha lido muito, cheio de um humor particular e capaz de rir da sua maleita da época (o reumatismo) que o obrigava a tomar muitas aspirinas efervescentes e a andar devagar”.

João Alfacinha da Silva fazia parte de um grupo de universitários com interesses culturais que cirandava, para citar um dos seus elementos, Diogo Pires Aurélio, “pelo triângulo Entrecampos – Cidade Universitária - Rua da Beneficência. Mais Entrecampos e Beneficência do que Cidade Universitária”.  Numa intervenção sobre Alface feita em Montemor, Pires Aurélio lembrou o que é que unia o grupo: a literatura e a guerra. “A literatura confundia-se com a ânsia de viver tudo de um dia para o outro; a guerra era o medo de morrer”. Perder o ano  representava ir para a guerra. Acabar o curso significava ir parar a Mafra e depois seguir para a guerra. “Até o Alface acabou em Mafra, com aquela figura franzina e o reumatismo agudo, que o fizera algumas vezes ir bater-me à porta, altas horas, a desafiar-me para voltar para a noite, porque ele não conseguia dormir com as dores”.

 

O grupo costumava visitar autores pouco relevantes para “o meio". Exemplos:  Lautréamont, Gombrowicz (Alface chegou a ir a Paris entrevistar a sua viúva),  Raymond Roussel, Norman Mailer, Malcolm Lowry, Cortázar. “Todos eles extravagantes e não alinhados”.  A publicação, em 1969, de “A Noite e o Riso”, de Nuno Bragança, e de “Maina Mendes”, de Maria Velho da Costa, marcou esses estudantes. Tal como o Prémio Revelação Almeida Garrett atribuído em 1968 a Manuel da Silva Ramos,  com “Os três seios de Novélia”. Foi, por assim dizer, a carta de alforria, a confirmação de que a literatura não se resumia ao neo-realismo”, comenta Diogo Pires Aurélio.  O patrão da crítica nacional, João Gaspar Simões, lavrou então um protesto contra o prémio, em crónica semanal. “Nem ele imaginava os telefonemas anónimos que iria receber a seguir”, ironiza Diogo.

 

João conheceu a mulher, a pintora Gina Frazão, numa boleia para a pastelaria Granfina, que ambos apanharam de uma amiga, Vera Azancot. Mais tarde diria a Gina que esta lhe tinha parecido estar grávida. Não estava. Mas três anos mais tarde engravidou da primeira filha de ambos, Margarida. Gina, que com ele viveu todos os dias, via em João um homem bom e generoso, adepto da amizade – eram frequentes as vezes em que recebiam amigos em jantaradas supimpas -, e que sabia ouvir. “Era teimoso e voluntarioso e tinha dentro de si uma imensa doçura”.

 

Margarida Alfacinha, também ela artista (é pintora e designer), diz que o pai era conhecido por ser um pai galinha, categoria certificada e assumida pelo próprio, sempre preocupado em saber da descendência, toda ela no feminino. Um misto de atenção muita e desejo de deixar ir.  Cada um fazia o seu papel na coreografia familiar. Quando alguém tinha uma ideia, os outros iam atrás e ajudavam. “Se era a exposição da minha mãe íamos todos ajudar, se era um lançamento de um livro do meu pai, lá estávamos nós, a distribuir convites, a cortar e a imprimir, com o Manel (da Silva Ramos), com o Vasco Santos”.  Digamos que a distância entre pais e filhos era encarada de um modo original, mesmo que de vez em quando existissem inevitáveis tricas entre as entidades paternas e filiais. “Éramos mais personalidades autónomas em acção, sem imposições do carácter de ninguém”.  Pai e filhas brincavam com tudo, com tudo gozavam. Com a morte, inclusive. Passavam tardes em família a imaginar as suas pedras tumulares com frases cómicas. E a rir.

 

Carlota Corte-Real, a filha mais nova, começa por dizer: “O meu pai é o melhor exemplo que tenho de que a vida é uma coisa fabulosa”. Tem memória de, antes de adormecer, o pai a levar a mundos “completamente malucos e excitantes”, ficando de olhos arregalados à espera de saber mais. Depois das histórias veio a oferta de livros escolhidos segundo um cânone pessoal e extravagante. Aos 21 anos, Carlota, bailarina, resolveu sair de Portugal e o pai levou-a de carro, em finais de Setembro, até Montpellier. “A nossa relação continuou em emails e encomendas, em que me mandava alho, azeite, arroz, hambúrgueres vegetarianos que faziam rir os meus colegas na universidade”.

 

A relação que teve com as filhas transferiu-a depois para o contacto com os netos, Guilherme e Francisca, a quem dedicou o livro infantil “O burro que anda no céu” (Ambar) e com quem se demorava em construções na areia e em passeios no Parque Silva Porto. Mas não eram só as crianças da família a merecer a sua atenção e a sua capacidade para as desafiar para o jogo de imaginar e rir. Teresa Paixão lembra-se de jantar com ele e com Ana Medina Mesquita, filha de um amigo de ambos, Mário Mesquita: “Começaram a disputar a autoria de umas receitas culinárias”. Ana faz o enquadramento: “O Alface entrou na minha vida fazendo parte dos amigos da geração dos meus pais, a Gina e ele eram uma presença constante em casa da Francisca (Van Dunem) e do Eduardo (Paz Ferreira) e nós também. Ele era um chato, sempre a provocar-me! Era o meu inimigo de estimação, provocava-me desde criança: ‘Mesquitinha, como vai a minha amiguinha?!’”

 

Os dois começaram a trocar cartas a partir de uma receita que João quis mandar a Ana. “O Alface era um grande cozinheiro. As cartas vinham em cartõezinhos brancos escritos dos dois lados e com setinhas a mandar virar para o outro lado, vinham com salamaleques irónicos para mim e para os ‘paizinhos’, e depois continuava com a receita propriamente dita, onde entrelaçava pequenos comentários de humor e em que os ingredientes eram adjectivados e anunciados como só um bom escritor o sabe fazer”. Ainda com Alface em vida, emoldurou uma dessas cartas-receitas escrita por ele, hoje em exposição na cozinha da casa na Noruega onde vive.

 

Na etiqueta profissional, João Alfacinha da Silva destinou a si próprio o título de escritor, no sentido daquele que escreve tudo o que for necessário aos apetites da alma e às necessidades do bolso - desde literárias prosas e notícias de rádio até guiões de telenovela. Gina lembra-se de o ver com muitos blocos nos quais escrevia, a lápis ou a esferográfica, na sua letra pequeníssima, todas as ideias que subiam e desciam a montanha russa mental.

 

Começou por estacionar no jornal República. Depois, a convite de Álvaro Guerra, foi escrever para televisão, em programas produzidos por João Martins, “O Ensaio e o Impacto”, no qual se cruzou com o realizador José Nascimento e os irmãos Fernando e João Matos Silva. A colaboração foi, como se diz hoje, descontinuada  e, com os novos cúmplices, criou uma cooperativa de cinema, a Cinequipa.

A realizadora Margarida Gil conta que João Alfacinha da Silva escreveu para um filme seu sobre “zoologia fantástica”. Mais tarde, fizeram os dois parte da equipa de um telejornal alternativo para o canal 2, “crítico à toda-poderosa cultura de então”. Os apresentadores e autores eram Fernando Assis Pacheco e Eduardo Prado Coelho, os quais nunca aborreceram a equipa com qualquer reparo.

A digressão audiovisual a partir de certa altura ficou só áudio. Entrou para a antiga Emissora Nacional, onde se cruzou com, entre outros, Herberto Helder, de quem se tornou cúmplice e amigo. Prosseguiu a sua missão profissional de escrever textos para rádio e televisão mas a dado momento – vocação de personalidade pouco dada a carneirismos e utopias e heterodoxa nas opiniões – encanitou-se com uma “uma fase muito ‘militante” por que passou a RTP e saiu da Cinequipa.

 

Era assim João: quando se aborrecia, bye bye. Foi isso que aconteceu depois de estar empregado durante 20 anos na Rádio Comercial, mantendo sempre colaboração episódica nos jornais e na tv. No período da Comercial, onde fez parte de uma redacção com figurões jornalísticos como Joaquim Furtado e Adelino Gomes, escreveu noticiários e programas muitos, destacando-se entre eles “Marcas de Um Século”

Em “Marcas de um Século”, João Alfacinha da Silva preparava com a pinta da sua escrita informada (na era pré-google) a narração à altura de João David Nunes sobre a História do século XX nas suas múltiplas modalidades e áreas. Resultado, nas palavras do último: “O que podia ser uma chatice transformou-se num programa com grande qualidade e um grande impacto”.

A edição inaugural começou deste modo: “Não há uma nem duas, há milhares de maneiras de pegar na História – antiga ou recente – e ver dela os ecos no presente, aquilo que atravessou o mar do tempo e desaguou nos nossos dias. Há quem consiga reconstituir um animal pré-histórico a partir duma pegada sumida nas rochas da praia; quem reinvente o quotidiano na Grécia Antiga ou no Egipto dos Faraós pelo achado de ânforas ou máscaras funerárias. Estes programas que apresentaremos aos domingos no FM da Comercial, das 11 às 13, visam reavivar vestígios mais próximos, marcas deste século”.

 

Regina Santos, que também trabalhava na rádio, achava-o tímido, calado, com low-profile. Quando falava praticava um linguajar inventivo e colorido, com frequentes jogos de palavras e outros improvisos. Era habitual ir com Regina e Paulo Fernando tomar uma cerveja e picar uns tremoços num restaurante a que chamavam o “Sebo”, na esquina da rua Sampaio e Pina com a rua Castilho. Quando o jornal da noite já estava alinhado, voltavam à rádio e João batia à máquina, com furiosa velocidade, o noticiário internacional.

 

Por cansaço ou por necessidade de ter uma maior margem de manobra, após tantos anos de serviço radiofónico garantido, João Alfacinha da Silva resolveu abandonar o emprego por volta de 1992. Pensou que poderia sobreviver como ‘free-lancer” num país com um mercado escasso e territorial na área da comunicação.

 O amigo Eduardo Paz Ferreira ainda tentou demovê-lo da decisão de sair mas João bateu com a porta do estúdio, dando com isso início a um período profissional arriscado para um homem casado, pai de duas filhas em idade escolar.

Há quem diga que Alface, cumprindo o estereótipo alentejano, se deixava amolecer nas redes pecaminosas da preguiça. Caso o tenha sido, foi um preguiçoso muito trabalhador. Profissionalmente, pisou muitos quintais ainda por nomear. Trabalhou em publicidade, adaptou peças de teatro, escreveu  novelas, fez recensões de livros para o jornal Expresso, colaborou com a Rádio Geste e a XFM. Pouco? Falta um posto: foi conselheiro sentimental, sob pseudónimo, no jornal Tal e Qual.

 

Alfacinha da Silva também se cansou do universo telenovelístico, mercado bastante estável num país que tanto aprecia o género. Durante um ano coordenou um grupo de argumentistas de telenovelas na NBP – Nicolau Breyner Produções – para a TVI. Tirou gozo da função, até porque considerou a labuta no formato uma maneira de agilizar a escrita, de actualizar a tradição do folhetim. Fez boas amizades. Com a actriz Margarida Carpinteiro, por exemplo, também ela coordenadora de um grupo de guionistas. “A hora de almoço era um bálsamo inesperado. O Alface gostava de fazer petiscos para todos nós e era adorável vê-lo cozinhar enquanto ia contando histórias hilariantes que tornavam aquela hora cheia de vida e paz. Vivia muito para os outros de uma maneira que só a ele conheci”.

 

Mas a sua vocação elitista entrou em colisão com as concessões que era necessário fazer para mimar as audiências. O “coloquialismo” de Alfacinha da Silva era enganador. A palavra “elite”, assustadora para alguns salões, não era excluída do seu discurso. Se lhe apontavam a acusação de ser elitista podia ouvir uma resposta elitista. Considerava a literatura, no seu melhor, um território para poucos e exigentes. O que escrevia tinha de lhe agradar – fosse romance, argumento ou diálogos de novela. Numa entrevista a Sarah Adamopoulos (Notícias Magazine, 20 de Março de 2005), tocou no assunto: “Penso  que quando acabarem as elites – sejam elas quais forem, gastronómicas,  vestimentárias, intelectuais – é porque a coisa está um bocado má. Prefiro as coisas que são raras e boas”.

 

Diogo Pires Aurélio considera que, sob a capa do desleixo e do “não te rales”, Alface escondia “um purista, senão mesmo um snob”. Recorda-se do seu fascínio a falar das viagens que Raymond Roussel fazia em paquetes de luxo, deixando-se em cada porto ficar na cabine ou no convés, enquanto os restantes passageiros saíam de mapa em punho a conhecer monumentos. Foi o que aconteceu numa histórica e divertida viagem que fez com alguns dos seus amigos mais chegados à Veneza dos escritores e dos livros, na qual se preocupou pouco em explorar com diligência os literatos recantos.

 

Em gostos vivia nos extremos e isso dava-lhe gozo. Apreciava a grande literatura mas era capaz de se comover com filmes menores e dava por si a chorar com as vitórias do seu clube, o Benfica. Mesmo na culinária, sabia que os prazeres maiores não estavam nos hiper elaborados pratos da cozinha francesa, mas sim no “sabor refinadíssimo de uns secretos de porco preto salpicados com umas pedrinhas de sal”.

 

Alface era, já se percebeu, uma humana figura dada a entusiasmos, apetites e paixões. A alguns amigos, recorda Margarida Gil, João apresentava-se sobretudo como um leitor. “Tenho para aí sete dioptrias e por isso também não posso ler muito. Gosto de ler aquilo que me dá prazer, não me sinto obrigado a ler o que quer que seja”.  Nomes que ia buscar às estantes: “Maria Velho da Costa, Almeida Faria, algumas coisas do Cesariny, do Herberto, do Armando Silva Carvalho, algumas do Alberto Pimenta. Não corro atrás das novidades”. Nem pensar.

 

Era também um cinéfilo capaz de consumir vários filmes por dia. Algumas preferências como Jacques Tati, Buster Keaton, Fellini, Jean Renoir e Stanley Kubrick. Mas também os filmes de Bruce Lee, para descontrair. E todos aqueles em que entrava Claudia Cardinale, a quem escreveu quando era rapaz. Falou dela num inquérito jornalístico de Verão sobre gente de quem sentia saudades: “Perco muita gente de vista, daí saudades, desterros e agonias. A saber: Claudia Cardinale, Michelle Pfeiffer, Laurie Anderson, Nico, Jeanne Moreau, Bibi Andersen, Judy Garland, Nina Simone, Maria João Pires, Billie Holiday, Elis Regina, Diane Lane, Katyna Ranieri, Rickie Lee Jones, Laure, Marianne Faithfull, Cybill Shepherd”. Por exemplo.

 

Na cozinha, que não houvesse dúvidas, ele era o chefe. Em casa e fora dela. Gostava de escolher os ingredientes com maior potencial no supermercado. Tinha trazido o talento da casa dos seus pais, do seu Alentejo gastronómico. Usava-o por exemplo nos jantares domésticos a propósito do lançamento dos seus livros que juntavam uma série de cúmplices à volta da mesa, com, recorda Gina, generoso riso pela noite fora.

 

N’“O Livro dos Alentejanos”, feito para o Círculo dos Leitores, homenageia a açorda alentejana, lembrando que fora inventada durante a Convenção de Évora-Monte para alimentar com os materiais à disposição – pão duro, coentros, azeite, sal e a água - quem, do lado liberal e miguelista, se demorava nos pormenores do compromisso. Deu-lhe este tempero final: “Nos dias que correm, mais pacíficos e fartos, há quem lhe junte bacalhau cozido e sua água, um ovo escalfado, ou peixe frito e sardinha assada, ou figos (migas gatas) frescos, sem esquecer um ramito de poejos. Fique ela aqui como símbolo de uma gastronomia que vale pela simplicidade criativa e pureza dos produtos que oferece”.

 

A propósito de comidas há um episódio que, por ser tão delicioso, é impossível não relatar. Por alturas da Expo 98, António Mega Ferreira encomendou a Alface um livro sobre a exposição de Sevilha. João e Vasco (Santos) foram, por ideia do primeiro, até ao Cascais Shopping para fazer uma visita ao restaurante Meson Andaluz, com a ideia de entrevistar o dono e com ele trocar umas impressões sevilhanas. A reluzente ideia caiu por terra ao perceber-se que o dono era afinal da Guarda.

 

António Lobo Antunes disse que escreve porque não sabe dançar como o Fred Astaire. João Alfacinha da Silva, homem endemicamente associado às letras, era um entusiasmado dançarino. Um dos recantos onde mostrava esse talento dançante era um bar alegadamente mexicano que existia para os lados da Lapa. Era o rei da pista, com os mais improváveis passos e movimentações. Tal como a avó que imaginou num dos seus livros: A avó Rosa dançarina “avançava uma perna e o avanço da perna nascia valsa, crescia tango, evoluía rumba, rodopiava mambo, implodia flamenco, explodia bolero, disparava corridinho”. Alface ele mesmo.

 

Outros desportos praticados com gosto pelo escriba eram o jogo da malha, o buraco (com cartas, acompanhado de um bom whisky), e o snooker.  Regina Santos lembra-se de Alface ir jogar com o seu ex-companheiro Ricardo Camacho, músico e médico, de quem era muito amigo. Também em Cacela Velha, Algarve, onde passavam os verões com uma série de amigos como Eduardo Paz Ferreira, Francisca Van Dunem e Manuel da Silva Ramos, o snooker era uma religião obrigatória, muitas vezes praticada com os pescadores locais.

 

Só a literatura não era obrigatória: “Lavo os dentes, tomo banho, como e durmo todos os dias, mas só escrevo e leio quando estou para aí virado. A literatura não me é uma canga, tem de me apetecer, tem de me dar prazer e, no meu caso, preciso de tempo para repensar o que fazer a seguir, para ser surpreendido; tenho de duvidar muito de mim, pôr em causa a minha capacidade de escrever e, superando esses impasses, superar-me e atirar-me à bendita página branca”.

 

Preservava como valores a lealdade e a fidelidade aos amigos. Ao editor, também ele amigo e cúmplice. Sentia-se em casa na Fenda, onde tinha um diálogo humano e literário difícil noutros catálogos. Além disso, sabia que com Vasco Santos haveria sempre risco e rigor editorial. “A capa, o miolo de um livro, dá gosto manusear livros feitos na Fenda”.

 

Além da lealdade, a liberdade. A liberdade de dizer, de fazer, de praticar, de ser indiscreto, pouco correcto. Sobre Portugal, país que celebrou numa trilogia bem mais próxima do seu caos do que algumas arquitecturas literárias com muito arrumo, dizia:  “Ninguém no seu perfeito juízo perfeito pode levar isto muito a sério. O português acha que há sempre um milagre disponível passível de safar isto. Ou seja, isto é um país de anedota. Dá para rir muito. Mas não tenho propósitos de reformular isto, acho que isto assim está muito bem. E não me penaliza excessivamente que isto seja um país de malucos gerido por malucos. Isso não me atrapalha muito”. Isto.

 

Qual o retrato do artista enquanto homem na casa dos 50? “Hoje, acho que sou o rapaz do trapézio voador, uma atracção do circo; sou um escritor, um desempregado de longa duração”. A convite da Dom Quixote tinha-se destinado a tradução das 900 páginas do romance Les Bienveillantes, do norte-americano Jonathan Litell, vencedor do Goncourt em 2006. Tramado.

 

Manuel S. Fonseca conheceu Alface em contexto cinematográfico. “Sem pressa, o Alface chegou, com a Gina, ao grupo jantarista nascido nas sinistras salas do Festival de Cinema de Tróia. Já não me lembro se veio pela mão do Pedro Bandeira Freire, dono do Quarteto, se pela mão do Dinis Machado. Foi o último a chegar e ele, que nunca tinha pressa, foi o primeiro a partir. Não importa para onde foi, foi para lá a rir-se alentejanamente porque o Pedro e o Dinis, que eram os que o ouviam melhor, em menos de ano e meio foram atrás dele”.

Não era de reverências e alianças públicas. Disparava quando para aí estava virado. À pergunta de um inquérito de Verão do jornal Público de 4 de Julho de 1995 – “Em 1995 o que é que o fez mais rir?” – atira, como bom anarquista a banhos, contra tudo e contra todos: “Manoel de Oliveira, José Saramago, Agustina Bessa-Luís, Amália Rodrigues, Álvaro Cunhal, Mário Soares, António Champallimaud, Jorge de Mello”.

 

Nos últimos anos refugiava-se durante temporadas em Montemor para escrever, provavelmente ao som de música Barroca, uma das suas bandas sonoras para o gesto da escrita.  O romance “Cai Vai Lisboa” foi escrito no Alentejo. Nos intervalos, fazia da sala um campo de desporto com os maços de cigarros a servir de baliza. Era, na sua própria versão,  uma forma de exercitar as pernas. Não dispensava os intervalos de visionamento dos jogos do seu Benfica no Bacalhau, sempre acompanhados de imperiais e de pernas de rã fritas.

Gostava de passar pelo mercado para comprar os ingredientes para os seus cozinhados. Algumas vezes Victor convidava João para ir a sua casa e provar os pratos que a mãe de Alface fazia como esparregado de favas, açordas, borrego assado, sopa de cação. Comia, comia e no fim sentenciava: “A vida é muito dura!”. E depois tirava uma sesta. Realmente é.

 

A saúde é que já não ia bem. Tinha a tensão alta e a família e os amigos sabiam-no. Filho de médico, tratava-se mal. Comentou com Victor Guita: “Tenho a tensão a 20. Qualquer dia...”. Ao desgaste físico juntava-se o cansaço de não ter o reconhecimento que achava que a sua literatura merecia. A amiga Ana Prata, com quem tinha um almoço marcado para o dia a seguir ao da sua morte, comenta: “Creio, nunca mo disse, que sentia a injustiça do pouco reconhecimento do grande escritor que era. Fazia o que era preciso e nunca conheci ninguém que desprezasse tanto a sua imagem: fora da literatura, era, ou assim parecia, completamente indiferente ao resultado do que fazia e ao que fizessem do trabalho dele”.

 

Talvez Alface nunca tenha aceite a contradição sublinhada por Antonio Tabucchi numa carta de 16 de Março de 1980: “Você quer ser um escritor elitista e depois queixa-se que o povo não fala de si, porra. Ora essa!”. Diogo Pires Aurélio acha que a imagem de desleixo o prejudicou. “Em país de gente séria, quem não se dá ares compromete a reputação. Julgo que ele viveu até ao fim essa ‘vida literária’, de um quixotismo que via literatura em tudo e sabia, por isso, que não há senão a literatura para se viver a sério”.

No dia 1 de Março de 2007 João Alfacinha da Silva encontrava-se na Culturgest para participar numa sessão de leitura organizada por Maria João Seixas. No público uma série de leitores liam e reliam com fina atenção o romance “Cá Vai Lisboa” seguindo as pistas dadas pela jornalista. A dado passo, durante a sua intervenção, João sentiu-se mal e caiu. O que podia parecer um número do escritor era afinal a manifestação fatal de uma doença. 

 

No dia a seguir o jornalista Adelino Gomes escrevia para o Público a notícia: “O escritor João Alfacinha da Silva, que assinava Alface, morreu ontem, aos 58 anos, depois de um AVC sofrido numa Comunidade de Leitores dedicada ao seu romance ‘Cá Vai Lisboa’”.

“Morreu no seu posto, em plena homenagem à sua obra e em plena festa dos seus leitores”, comentou, na sequência, Seixas. Diogo Pires Aurélio considera que há algo de alfaciano na sua morte: “Morrer no uso da palavra: creio que nem ele próprio, com toda a imaginação que se lhe reconhece, poderia alguma vez imaginar para si um final mais adequado…”. Ana Medina Mesquita não dá desta vez a receita, faz um diagnóstico: “O Alface era uma personagem digna dos seus próprios contos, irreverente e ao mesmo tempo tão cheia das fraquezas humanas, e a sua morte, pela ironia do contexto, poderia ter saído de um conto seu”. Poderia. E continua, certeira: “O escritor que faz a sua saída do mundo dos pensamentos durante o bater de palmas do seu público – é agressivíssimo e brilhante ao mesmo tempo, como a sua escrita”.

Margarida Gil, ao procurar com delicadeza as palavras para chegar ao amigo, como que fala por muita gente próxima: “Tantos dias que penso ligar-lhe, ou estranho não receber nenhuma chamada sua ou os livros que permanentemente me emprestava. Os seus extraordinários livros, as suas extraordinárias ideias. Os olhos riam,  um terno sátiro que se escapou tão discretamente como viveu”.

Um terno sátiro que se escapou tão discretamente como viveu. Uma frase possível para a sua pedra tumular. Ou então, ainda continuando no jogo que praticava em família, aqui jaz João Alfacinha da Silva, conhecido como Alface. Viveu fora do palco e morreu em palco, no uso da palavra, como uma das suas personagens. Ou ainda uma mais simples e cortante Cuidado com o Rapaz.

 

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(Texto editado na penúltima edição da revista Ler)

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publicado às 01:33

Hope

por Nuno Costa Santos, em 20.04.15

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"Even if the hopes you started out with are dashed, hope has to be maintained".

Seamus Heaney

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publicado às 23:35

Pessoa Nunca Viu Jogar o Quaresma

por Nuno Costa Santos, em 20.04.15

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P: “Triste Titan” traz a afirmação de que “o melhor do mundo é a vida dos ciganos”. O Pessoa com aquela história das crianças foi um bocado infantil?

R: Na... só que nunca vira jogar o Quaresma.

(Andei a ouvir "Caixa Negra", novo álbum do GNR, e fiz uma entrevista-inquérito ao Rei Reininho. Pode ler-se aqui)

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publicado às 21:30

Dois Países

por Nuno Costa Santos, em 16.04.15

Vai acontecendo. Sigo de Campolide até ao centro comercial das Amoreiras. Em cinco minutos passo do sossego do bairro ao arraial de sofisticação. Dos reformados a jogar às cartas sem dizer uma palavra aos executivos que se passeiam à conversa. Das queixas ao balcão por causa do lixo nas ruas aos desejos de novas viagens. Dos pastéis de bacalhau ao Go Natural. Do Correio da Manhã à Monocle. Dos indianos das lojas de telemóveis aos funcionários fardados em corredores de novas tecnologias. Do bêbado que dorme na paragem de autocarro à mulher que bebe um sumo light de laranja e cenoura. Dos polos de feira arrumados num saco de plástico preto às camisas da Labrador em cuidadas montras. Das mercearias familiares ao Jumbo das figuras públicas. Dois países encostados um ao outro. O cronista, viajante sem passaporte, algures no meio, sem pertencer a nenhum deles.

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publicado às 16:44

Devo?

por Nuno Costa Santos, em 07.04.15

Às vezes sinto-me dividido: devo ou não pôr fotografias da minha gente no Facebook? A opinião pende em geral para o não. É um pudor qualquer. Já coloquei uma foto minha a dar biberão ao meu filho mais novo. A cara dele não aparece. Tenho demasiados "amigos" na minha página para a revelar.

Mas às vezes também penso: porque é que não posso partilhar fotografias de quem me é mais precioso? Mulher, filhos, mãe, pai, irmã, cunhado, primos, tios, amigos. Partilhar com o vasto mundo como é uma parte do meu pequeno mundo. Há algo de extraordinário nisso? Logo vem o pudor. E a ideia de que poderá ser uma facilidade para captar mimos (não há mais adesões do que quando se partilha a foto de alguém querido). E o desejo de apenas revelar aos meus aquilo que é mais íntimo.

Mais aqui.

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publicado às 23:59

As Nossas Lembranças Observam-nos

por Nuno Costa Santos, em 06.04.15

Joana Emídio Marques empurra a maior parte da antologia da poesia de Rui Pires Cabral para o limitado gosto daqueles que fizerem inter-rails, leram Al Berto e usaram Doc Martens. Ou para “leitores com atitude adolescente” que encontram nos poemas“o conforto das coisas conhecidas”.

Pede no gesto ajuda a Deleuze para afirmar que “escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, os sonhos e fantasmas”. Formulações como “escrever não é” e “escrever é” falam por si, não merecem grande glosa. Ditadas por Deleuze ou pelo intelectual do jornal da junta. Mas já que Herberto foi invocado como contraponto exemplar a esta literatura dos dias pode invocar-se outro escritor importante que também morreu recentemente: Tomas Tranströmer. Que escreveu “As Minhas Lembranças Observam-me” (Sextante, 2012), livro - no caso de prosa - que não é mais do que aquilo que parece: sóbrio relato das recordações que o escritor mantinha dos seus primeiros anos. Foi-lhe necessário fazer uma ordenação de polaroids, episódios banais, escritos de uma forma seca, sem conclusões.

Joana Emídio Marques pede grandes favores à poesia: “Um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do tempo, dos outros, serve para quê?”. E a gente a pensar que a poesia pode ser muitas coisas e que a ideia de a poesia servir não é das melhores. Se é para servir deve vir com um manual de instruções. Ora é isso que o texto parece que tenta dar: um manual de instruções sobre o que é a poesia e sobre o que não é. Mais: sobre o que é a literatura e sobre o que não merece o qualificativo. Não estamos no domínio do questionamento. Estamos no domínio do normativo. A poesia, defende-se, deve abrir caminho para “profundidades escondidas”. Olhe que não, olhe que nem sempre.

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publicado às 00:20

Três desertos

por Nuno Costa Santos, em 06.04.15

Peço uma sandes de presunto.
- Com ou sem manteiga?
- Sem. E uma imperial.
Na mesa à minha frente um casal almoça um dos pratos do dia. Chocos, acho. Muito moreno ele, blazer aos quadrados, bigode à Omar Sharif. Ela de blusa branca e larga, rosto cansado de quem chegou de um sono recente.
São ciganos. Não falam um com o outro. Olham a dança dos petiscos, a coreografia dos digestivos.
Sem aviso o homem faz-me uma pergunta. Não percebo. Repete. Quer comprar um polo? Recuso. Volta a perguntar. Digo que não. Levanta-se e estende-me vários em cima da mesa. Azuis, amarelos, brancos, pretos. Preço bom. Recuso. Bebo mais um gole de cerveja, trinco o presunto sem manteiga. Digo que não. O homem enfia um dos polos num saco de plástico, semeia-o junto ao meu cotovelo esquerdo. Digo que não. Estou interessado.
Antes de sair passo por eles e digo que a nota que tenho na carteira não paga o preço.
- Leve-o consigo. Confio em si – diz-me o homem.
Nelson Rodrigues atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer: “Nelson, você é um dos meus amigos fundamentais”. Naquele momento, numa tasca em Campolide, eu atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer: “Confio em si”. Quem é que hoje diz “confio em si”? A frase veio de um sítio qualquer, distante, não do outro lado da rua e do calendário de 2015. Um lugar e um tempo tão antigos como o prédio que pisávamos na hora do repasto.
- Depois traga o resto do dinheiro. Entregue-o ali no balcão e diga que é para o Lopes.
Às vezes confio em mim. Mas é melhor fazer já o lembrete.

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publicado às 00:13

Heroísmos não, por favor

por Nuno Costa Santos, em 01.04.15

No Expresso. O texto de Clara Ferreira Alves sobre Herberto Helder – emotivo, grato, zangado com a apropriação geral e capaz também de tocar no essencial de uma poesia que corria muitos riscos e estava sempre “à beira do precipício”. O de Pedro Mexia, também pessoal, também agradecido, com alguns pontos que merecem ser questionados. O texto de Luís Pedro Nunes, que acompanha o ensaio fotográfico. Surpreendente. Por revelar que Herberto Helder era um leitor tão omnívoro que até lia revistas cor de rosa. É uma notícia, sim, num homem que se julgava muito fora disto.

 

Um costume. Faltou à imprensa portuguesa um artigo sobre os cinzentos do escritor e do homem. Um perfil - é a referência que tenho - à inglesa. Em que se destacam virtudes e defeitos, gestos maiores e feitios, textos certeiros e tiros ao lado. Artigos sem reverências extremas. Dando o mérito a um gigante da sua língua mas colocando-lhe reticências nalguns atalhos.

 

Admito que grande parte da sua poesia não me fala, reconhecendo-a como sendo, nos seus melhores momentos, de uma casta superior. Vocação pessoal, sim. Prefiro quando a arte concilia o grandioso e o mínimo. Tenho a "Poesia Toda" aqui ao lado, livro que comprei - vejo agora - num melancólico mês de Fevereiro de 1994. Do livro só me tocam verdadeiramente os poemas iniciais. Versos como estes: "Não sei como dizer-te que minha voz te procura". O poema "Aos Amigos". A muitos outros - que agora reli - faço perguntas. Quando o poeta escreve "dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra" preferia saber o nome dessa mulher e qual o autocarro que costuma apanhar. Questão de gosto: na arte pouco me comove a abstracção sem o contraponto do concreto. E dispenso o adjectivo jovem, embora também o pratique.

 

Pedro Mexia escreve que a sua poesia não era referencial nem abstracta. Se a poesia de Herberto não é abstracta – não tem uma raiz abstracta - que poesia o será? "Não se pode tocar na dança" . Que dança é essa? "Alguém falava: sangue, tempo". O sangue de quem, em que altura? O objectivo é o de criar uma linguagem nova, um território outro, que a maior parte das vezes parte do geral, do abstracto, do absoluto. E onde a palavra “mundo” é muitas vezes repetida.

 

Tem-se falado da morte de um "homem superior". E é sempre referido o episódio do Prémio Pessoa. De ter querido passá-lo a outro e de não ter aceitado o dinheiro. É muito raro e revelador, sim. Um gesto maior. Já o não querer aparecer e dar entrevistas é algo não me parece suficiente para merecer palmas de todos. Foi um princípio de recato. Respeitável. Mas há escritores que dão grandes entrevistas (que acrescentam ao que escrevem) e não é por as terem dado que os tornou menores nem "vendidos". Nem transforma os jornalistas em funcionários ao serviço da sociedade do espectáculo. Gostaria de ter lido uma grande entrevista de Herberto Helder.

 

Do homem, tal como o Pedro Mexia, sei o que se fui sabendo por amigos que com ele se cruzaram. Histórias longe do heroísmo. Episódios muito humanos, nossos. Que complementam - por serem contrários - a grandeza do gesto na altura do prémio. Herberto frequentava cafés onde se praticava aquilo que pomposamente se classifica de “tertúlias”. Individualista, secreto, não era alheio ao fenómeno de grupo. Às cumplicidades. Tinha as suas coisas, como se costuma dizer.

 

Também, por causa de algumas pesquisas, soube de algumas amizades com autores cujo rasto biográfico procurei. Como a que teve com Fernando Assis Pacheco. Ainda me lembro do momento em que a Rosarinho ligou a Herberto para lhe pedir autorização para publicar na crónica biográfica um excerto de uma carta a Assis e de Herberto ter dito sem hesitações que sim. E com o excelentíssimo prosador João Alfacinha da Silva, aliás, Alface, de quem foi companheiro de ofício.

 

O filho Daniel disse no "Eixo do Mal" para não tratarem o pai como uma estátua. Com unanimismo. Já estão a fazê-lo. Tratemos Herberto como ele merece. No seu fogo, no seu talento e nas suas contradições.

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publicado às 22:19


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