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Quando Puder

por Nuno Costa Santos, em 30.03.15

Corro o risco de voltar a escrever sobre o bairro. Estou a trabalhar num. Em Campolide. Os cafés, as tascas, as pessoas que sabem os nomes umas das outras, as donas com nomes de donas, as minis, o cabeleireiro/manicure/pedicura/depilação (podia também ser alfarrabista), as mulheres que adormecem nos cafés, a concorrência da bica (umas a 60, outras a 50). O homem do norte, o brasileiro, a mulher que serve sempre o café com o extra do copo de água, o mini mercado do indiano, a mercearia a transbordar de fruta onde tenho comprado um desodorizante antiquado, a Alberta Marques Fernandes na televisão, os balcões de zinco, a falta de lugar para estacionar, a russa costureira e o seu gato de olho azul, o pintor em roupa de trabalho, o multibanco que fica longe, a internet entre febras, o quiosque dos jornais onde não se vende o Público, o Correio da Manhã e as revistas de televisão a tapar o bolo de arroz, a merda no passeio, as histórias de outros que se contam aos bocados, olhe tem o casaco a cair, os velhos que jogam às cartas, o calendário do vinho Bonifácio, o anúncio sobre as férias em Viseu, o pastel de bacalhau, o homem que me chamou jovem, quando puder faça a conta.

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publicado às 20:46

Paul

por Nuno Costa Santos, em 25.03.15

 

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O Paul morreu há umas semanas. O Paul Pacheco.  O Paul era uma das pessoas que aceitaram contar a sua história em palco numa peça sobre deportação chamada “I Don´t Belong Here”. Conhecemo-lo no mês de Agosto de 2013.  Foi em Ponta Delgada, na casa de uma associação que apoia homens e mulheres ainda à procura de um trilho para os seus corações e hábitos. Já não me lembro bem de como é que aceitou contar-nos a sua experiência. Tinha acabado de chegar.  Não falava português. Mãos nos bolsos. Chinelos, meias brancas, cabelo apanhado por um carrapito.

 

 Há pessoas que são diálogo. Paul era monólogo. Talento de falar e ser ouvido. Em palco contava uma história. A história do dia em que, por alturas do liceu em Toronto, havia sido convidado para dançar por uma rapariga. Ele trazia para o momento todos os pormenores do baile, o que sentiu, o que sentia passados tantos anos, a sua fragilidade, a certeza da rapariga. E como tinha trazido para a idade adulta esse medo de menino.  A rapariga estava segura do seu gesto de o desafiar. Ele paralisara com aquele movimento de segurança que nunca imaginaria ter.  Ainda se mostrava perplexo como um pré-adolescente a descobrir a paixão.

 

Contava a história com a braveza dos encolhidos.  Prendendo o espectador de iphone ligado através da capacidade de narrar que poucos têm. Permitia-se fazer pausas longas, de quem sabe que o público, espectadores ou ouvintes de rua, não vai espreitar os likes que caíram na conta.

 

Era um homem forte – teso, como se diz nos Açores - e ansioso. Pensava muito sobre as coisas e o seu pensamento por vezes parecia blindado. Também era dado a zangas. Enfurecia-se com quem o atendia ao balcão. Desconfiava. Desconfiava dos funcionários como se os funcionários quisessem sabotar a sua ficha clínica. Desconfiava do país dos pais, da forma como isto funciona. Desconfiava de muitos intentos humanos. Havia nele a desconfiança do violentado.

 

Também se sabia rir. Também se divertia e usava o sentido de humor quando se esquecia do medo. Contava episódios divertidos. Meteu-se comigo, casado, pai de bebé, quando me viu ficar até tarde no teatro depois da estreia no Maria Matos. Talvez se recordasse do tempo em que teve uma vida familar. Anos em que viveu com uma mulher que tinha um filho. Gostou da experiência. Era feliz quando recordava esses momentos de aconchego.

 

O Paul morreu. Ficam as imagens do seu sorriso de rapaz, do seu olhar primeiro desconfiado, depois terno, depois desconfiado, depois terno outra vez. Do momento em que foi a casa buscar uma autobiografia de Neil Young porque lhe perguntei se gostava do cantor canadiano, de um jogo de bowling nas Portas do Mar, do seu frenesim de expressões e gestos durante uma partida de futebol entre os EUA e o Canadá, da sua decisão silenciosa, numa apresentação em Montemor, de fazer a sua performance em português (imperceptível) porque soube que havia alguém no público que não dominava o inglês, da sua figura estendida numa cama do Hospital de Santa Maria e feliz por saber que alguém dos jornais havia elogiado a peça. Dos ensaios de uma peça de Beckett que acabou por não entrar no espectáculo. Já não era o homem de carrapito, chinelos e meias brancas. O cabelo estava curto, vestia umas calças de corte clássico, uma camisa aos quadrados de homem normativo, uns sapatos comuns. No rosto, uns óculos que lhe davam a aparência de intelectual. O seu olhar sempre a procurar a angústia.

 

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Paul Pacheco era um homem religioso. Tinha ficado nele a testemunha de jeová que os pais eram. Citava a Bíblia. O pai havia-lhe ensinado que não devia prestar culto a símbolos não religiosos – e também tinha sido por isso que não respondera às perguntas sobre cultura canadiana dos serviços de emigração. E por causa do seu feitio, que sabia difícil. Não se refugiava na política quando se olhava ao espelho.

 

O Paul morreu de um cancro na sequência de uma hepatite de anos. Longe de casa, longe das suas ruas,  longe do seu país. Não é fácil identificar o lugar exacto aonde pertencia  –  ele que iniciara cedo numa vida de drogas e errâncias várias - mas a sua casa não era de todo a ilha de São Miguel nem o quarto onde se demorava, ainda espantado com os “amigos” que uma ligação recente ao facebook lhe sugeriam. Contava que a sua família deixou de habitar a zona onde vivem portugueses para ir viver noutro lado da cidade e ele passou a sentir racismo sobre a sua pele escura. No pátio do liceu virtual toda a gente queria ser sua amiga.

 

Textos longos só na voz de quem os sabe narrar. Este vai-se demorando talvez para não ser presa de um final fácil.  Grande é  a tentação de dizer: ele agora está no céu, a olhar por todos nós, com o Deus que nomeava todos os dias. Melhor ficar por um remate menos abstracto. A forma desabrida e talentosa como se entregou a “I Don´t Belong Here” ficou na lembrança de muitas pessoas e sensibilizou-as para uma tragédia que muitos vivem e poucos conhecem.  A sua dor física foi apesar de tudo veloz para o que poderia ter sido. São duas certezas. Suficientemente fortes para encontrar um sentido.

 

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 (Imagens: Paulo Abreu)

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publicado às 21:50

As Maravilhas do Universo

por Nuno Costa Santos, em 13.03.15

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(Foto David Caetano)

 

 “Não sejas burguês. Contempla as maravilhas do universo”. É um lema deste disco dos Capitães?  

Começa bem. Essa é (finalmente) uma muito boa pergunta. Ora, este não é certamente o exemplo de disco convencional. O que desencadeou tudo isto foi a necessidade que sentimos de romper com os padrões instaurados pela ‘indústria da música’ em Portugal e comportarmo-nos - enquanto conjunto musical – tal como nos comportamos diariamente: defendemos sempre a verdade, não nos levamos demasiado a sério, gozamos com tudo, dizemos o que pensamos, fazemos o queremos, como queremos, quando queremos, sem caganças. É crucial sabermos contemplar o que nos rodeia. Há imensa gente incrível à nossa volta e temos de nos aproximar do que é bom, em vez de gastarmos a vida com os males menores. Combatemos na linha da frente pela verdade e pelo bem-estar.

 

- Como é que tiveram a ideia de juntar esta larga família (do Samuel Úria e do Tiago Cavaco até ao Rui Pregal da Cunha e ao Toy, passando pelo José Cid e pelo Tiago Pereira) a bordo de um centro comercial?

Este disco é a consequência de não sabermos estar sossegados e não sabermos parar. O primeiro convite que fizemos foi à Mel do Monte. Depois começámos a achar graça a comentários que circulavam sobre a ‘rivalidade’ entre nós e os Capitão Fausto e quisemos concretizar essa batalha. Tudo assim, sucessivamente. Umas ideias atrás das outras. Estávamos a jantar e alguém disse ‘Viam os episódios do Bruno Aleixo?’. Pronto. Imediatamente disparámos-lhe o convite. Foram sendo convidados à medida que íamos tendo delírios. A bordo de um centro comercial para que nada nos falte. Adoramos o resultado final.

O resto aqui.

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publicado às 08:15

Sonhos Pop

por Nuno Costa Santos, em 13.03.15

Os Capitães da Areia foram para o espaço compor. Está tudo registado no disco “A Viagem dos Capitães da Areia a Bordo do Apolo 70”, um álbum com canções celestialmente bestiais.

 

A viagem é irreal surreal mas também tem muito de casa portuguesa, com certeza. Confirma-se o talento superior para as artes das melodia feitas de teclados transcendentais e para um ora poético ora delirante ofício das letras. Os rapazes levam-nos com gentil leveza para Venus, Marte e demais planetas. E uma terrinha dançante cá em baixo: Ibiza. A mesma ilha onde os New Order gravaram uma boa parte de “Technique”, um álbum que podia estar na bagagem da nave onde seguiu o grupo (Ájax tem aliás qualquer coisa de “Fine Time”). Na mala também caberão discos dos Heróis do Mar e dos Sétima Legião (ouça-se a marítima voz de “A Partida para o Espaço” a partir dos 2.15 mns).

 

“Arco das Portas do Mar” e “Beijos Espaciais” são hinos à juvenil frescura que qualquer alma que se sente quer viver até aos últimos instantes debaixo do sol. Facilmente se imaginam tocadas e cantadas ao vivo no mais épico-festivo dos ambientes. “O Duelo dos Reis” é uma ideia genial que mete à conversa, em canção acelarada, Rui Pregal da Cunha, Toy e Pedro de Tróia e nomeia cerejas do Fundão e tortas de Azeitão, numa celebração de um país onde se pode e se merece ser feliz (sentimento que atravessa todo o disco).

O resto  aqui.

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publicado às 08:11

O Verdadeiro Artista

por Nuno Costa Santos, em 09.03.15

Comecei hoje o dia com uma atitude que me fez lembrar Pedro Passos Coelho: a pagar a segurança social. De cada vez que teclava um número recordava o seu rosto blindado, a sua voz sem quebras, o seu coração de barítono. Temos de ser uns para os outros: se o primeiro-ministro é capaz de viver cinco anos sem pagar segurança social, há quem tenha de se chegar à frente. Foi o que fiz, em nome da saúde financeira da Nação.


Lembrei-me, na altura em que digitava o valor de 248,18 euros (presente recente do ministro Mota Soares), da exigência recente que a Faculdade de Letras de Lisboa, onde cometo a insensatez de cumprir um curso, me fez: obrigar-me a ter a segurança social em dia se quero usufruir do estatuto de trabalhador-estudante. Não basta a apresentação de recibos verdes a provar que ando a fazer pela vida nos mais variados planetas. É preciso o carimbo a provar que está tudo limpinho na folha de contribuições. Se me faltar o pagamento de um mesito (porque ando em apuros para garantir o leite meio gordo) não tenho o direito de trabalhar e estudar.

Mais aqui.

 

 

 

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publicado às 21:28

Novos deuses

por Nuno Costa Santos, em 04.03.15

No fim-de-semana passado vieram uns amigos cá a casa e trouxeram o filho. O pequeno passou o serão a divertir-se com a minha descendência. As crianças brincaram, jantaram, voltaram a brincar e acabaram, esgotadas, a dormir no chão e no sofá. E eu, velho rapaz que sou, lembrei-me da minha infância, também vivida aos fins-de-semana em casa dos amigos dos meus pais e também habitada pelo hábito de acabar a noite, esgotado, a dormir no chão e no sofá.


Foi uma raridade. Os meus amigos com filhos esquivam-se, com melancólica frequência e muitas vezes à última hora, a vir. "O menino está doente." Esta é a observação habitual, tantas vezes repetida que desconfio que possa ser um conto de fadas para entreter adultos. Trazer os filhos então é um escândalo impraticável.

O resto está aqui.

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publicado às 00:46


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