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"Todos os dias posto os meus pensamentos poéticos, as fotos das minhas comidas, as minhas indignações contra a troika, os retratos dos meus filhos e dos meus sobrinhos, as minhas citações do Fernando Pessoa e do Dalai Lama... E tu nada!!!"Ou como as redes sociais poderão pôr em causa as mais antigas relações de amizade. Um contributo guionístico da minha pessoa para o segundo episódio do Breviário Biltre, muitíssimo bem interpretado pelo Manuel Marques e pelo Miguel Borges.
"(...) Como se sabe, a Ilíada tem vinte e quatro cantos. Durante os primeiros dezoito, Aquiles continua amuado em consequência da desconsideração de que foi alvo no Canto I e recusa-se a combater (...)". Excerto do prefácio da tradução de Frederico Lourenço da "Ilíada" (Cotovia). É isto: o direito literário e sentimental ao amuo.
Cass McCombs é um dos songwriters que mais me dizem, ao lado de Kurt Vile, do gang dos Real Estate e de Mac DeMarco. E quando falo em songwriters incluo é claro a maneira como as guitarras e a restante instrumentação está alinhada e cozida. Aderi, pela suave felicidade na composição e na voz do caifornianio, ao grupo de adeptos de McCombs com músicas como "Prima Donna", "County Line", "The Loney Doll" e "The Same Thing". Ando à procura nos temas no novíssimo "Big Wheel and Others" o mesmo entusiasmo que senti a ouvir as canções anteriores. Encontro-o na aparentemente ingénua "Morning Star"("morning star illuminate/free us from this world of hate"), em "Brighter!", em " There Can Be Only One", na qual sinto um feliz perfume de Felt, em "Name Written in Water", com outro perfume, este de Lloyd Cole (nota importante: as citações, que se calhar são só minhas, nada retiram à originalidade e à potência do moço). O álbum traz outro tom, menos conhecido para a minha devota pessoa: um tom mais negro, mais macambúzio, mais experimental. Lembro "Joe Murder" (título que podia ser sacado com toda a legitimidade a Nick Cave), uma valsa de guitarras para dançar de olhos fechados, cruzada com um jazz ornettecolemaniano. Este abastardado casamento repete-se na rockada de "Satan is My Toy". Ele não era só isso mas permitam-me a simplificação: Cass não quer ser mais o menino viajante com cançonetas belas na mala. Está mais zangado e provocador. Que arrisque, sim senhor, e mantenha a melodia que aconchega nas mudanças de estação. (Ah, a espaços o álbum é atravessado pelo diálogo entre Cass e uma criança que me fez lembrar a conversa do Tiago Cavaco com a filharada em "Amamos Duvall").
As subidas selvagens de escalão na segurança social estão entre as medidas mais arbitrárias do governo. Olhemos o caso das artes, que é onde moro. Desculpem o tom pedagógico mas o assunto, perante a ignorância, exige pedagogia: nas actividades artísticas umas vezes ganha-se, outras não. Há meses bons e meses de escasso trabalho. Há anos simpáticos e anos miseráveis. Se alguém teve o azar (é esse o termo) de ganhar bem no ano passado, subiu de escalão. As gentes governativas esquecem-se é que este ano, num contexto cultural de vazio, as circunstâncias mudaram. O que não muda é a obrigação de pagar uma batelada (acima dos 300 euros e dos 400 euros por mês). A pessoa paga por aquilo que, excepcionalmente, ganhou no ano anterior. E é partir daqui, desta situação evidentemente injusta, que o cidadão nórdico, satisfeito por contribuir, transforma-se no mais irado dos taxistas.
“At the age of 46 I'm still one fucked-up little kid” (Mark Kozelek & Desertshore)
O melhor concerto que já vi do rapaz. E já lá vão três, com modalidades diferentes (uma delas com os Red House Painters). Esta é a modalidade a solo. O som em Torres Vedras estava impecável. O tamanho da sala é o adequado. As músicas - dos Sun Kil Moon, do Markinho em versão mono ou em colaborações - continuam a ser o que são: a celebração melancólica disto. E, continuo a achar, a mais bela e poética conjugação voz-instrumentação que já ouvi em dias de emocional melomania. No intervalo fui tomar uma cerveja (inexistente no local) aos bares do centro e uma alma generosa ofereceu-me um fino e a possibilidade de trocar uns cromos sobre gostos comuns antigos e novos, como os Vampire. Depois do concerto, apanhei o anjo com mau feitio a dar abraços às pessoas. E, tendo possibilidade (por circunstâncias que pouco interessam) de ir tomar um copo com ele, entendi que o melhor era voltar para Lisboa com os meus.
"(...) Para mim, a amizade continua sendo o grande acontecimento. Todos os sábados, lá vou eu almoçar com o Hélio Pellegrino. Lembro-me de que, uma vez, teve o amigo uma luminosíssima idéia. Diz: - 'Vamos tomar vinho'. Assim é o Hélio. Mineiro e calabrês, tem, por vezes, a volúpia européia do vinho. (...) Bebi para fazer-lhe a vontade. Na verdade, sou o homem da água da bica. Mas o Hélio bebeu, bebeu. E, de repente, pôs a mão no meu braço. Disse exatamente isto: - 'Nelson, você é um dos meus amigos fundamentais'.
Ora, eu atravessaria três desertos para ouvir alguém dizer isso. E, então, percebi uma das verdades mais lindas da terra: - o amigo é o santo. Não sei se me entendem e, se não me entendem, paciência. Mas o fato de o Hélio estar falando e eu a ouvi-lo, este simples fato era a nossa salvação. Ali, naquele momento, ele foi um santo e eu outro santo. Vejam vocês: - dois santos bebendo aquele vinho translúcido e também santificado.
(Alguém dirá que tudo isso é piegas, gratuito, discutível etc, etc. Não faz mal) (...)".
Há aqueles empregados de café que perguntam: "O que é que vai ser, jovem?". Mas há outros que arriscam mais: "O que é que vai ser, juventude?". Ser jovem é um peso que não se recomenda a ninguém. Mas ser "juventude" - ser toda a juventude - ultrapassa todos os limites. É uma responsabilidade que uma pessoa só não consegue aguentar.
Há uns anos eu e o Nuno Artur Silva escrevemos um sketch para o grupo Manobras de Diversão no qual dois intelectuais analisavam "uma obra" e a certa altura um deles dizia, sentenciosa e elogiosamente: "Ah, é de uma contenção!". Vejo que o comentário se vai generalizando. As melhores obras artísticas são aquelas que manifestam uma "enorme contenção" e "não fazem qualquer cedência ao sentimentalismo". Ora eu acho que o cinismo do mundo precisa de menos contenção emocional e mais mãos largas no sentimento. Sim, a arte pode ficar na praia, à entrada das ondas. Mas aquela que marca, que fica e se transcende é a que mergulha. A que tem a coragem para passar a zona de rebentação e de nadar para uma zona onde não tenha pé.
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