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Por aqui é muito difícil encontrar nos jornais uma crítica muito negativa - a um livro, a um disco, a um filme, normalmente portugueses - sem encontrar lá os vestígios de acinte, de um ressentimento qualquer. Quem aqui dá uma bolinha em geral não se fica por aquilo que lhe compete: a explicação para o facto de ter achado o que analisa muito frágil e inconsistente. Mostra que odeia o que desmonta. Que abomina o que disseca. E não só. Também exibe a circunstância de achar que o autor é tão terrível, incompetente e inábil quanto a obra que produziu. Que não devia sair à rua sequer. A pessoalização torna-se óbvia. Ora esta história só prejudica toda a gente: quem escreve, o jornal que publica e sobretudo o leitor. Sugiro por isso que cada recensão brutal, cada nota assassina traga ao lado um histórico das irritações e dos preconceitos que o crítico tem em relação ao criticado. Todas as histórias antigas, as opiniões sobre o que veste, a cara, os gostos gastronómicos e musicais, o que tem de fazer para ganhar a vida, os bares onde vai ao fim-de-semana, com quem se dá, etc. Merecemos saber tudo isso.
Há muita gente - entre ateus e crentes - que diviniza o acto criativo. Que defende que a criação deve ser respeitada até ao limite, como se fosse a realização de um gesto para além do espaço e do tempo. Percebo isso mas percebo pouco. Acho que todo o acto criativo pode ser repensado, corrigido, melhorado, abandonado, dessacralizado.
As pessoas mais velhas acham que sou novo. As pessoas mais novas acham que sou velho.
(em actualização)
A mais recente detenção de Rafael Marques fez-me ir aos arquivos e recuar a uma crónica que escrevi em 1999 para o suplemento DNA, do "Diário de Notícias". Começava assim esse texto: "Há uns meses atrás o meu amigo Augusto Baptista ofereceu-me um livro intitulado 'No Coração do Inimigo'. Disse-me que tinha sido escrito por um conterrâneo seu, um jovem poeta angolano chamado Rafael Marques". Foi nessa altura que conheci a história do jornalista, poucos dias depois detido, como informou na altura José Eduardo Agualusa num artigo para o "Público". Andava eu pela Faculdade de Direito e tinha amigos que conheciam as histórias angolanas por dentro - muitas, claro, marcadas pela guerra civil. Encontrei-me, durante a preparação do artigo, com Makaya José, amigo de infância de Marques, que me contou quem era o autor deste livro idealista, no qual as palavras mais nomeadas são "amor", "felicidade" e "utopia": "Mais ou menos em 1985 conheci o Rafael. Sempre se distinguiu nas notas e já na altura mostrava uma grande capacidade de comunicação". Makaya contou-me dos poemas que o amigo começou a enviar para o Jornal de Angola, da sua vocação para o teatro ("chegou a fazer parte de um grupo teatral em Luanda") e da circunstância de ter estudado uns anos em Inglaterra para se familiarizar com a língua inglesa. Voltou depois a Angola para trabalhar em jornais independentes como o Folha 8. Foi nessa altura que começou a escrever textos críticos para a situação angolana e para o regime. Em 2013 a história da detenção repetiu-se. Convém por isso lembrar os versos inequívocos do livro: "Quero ser a palavra/ o sorriso/ no coração do inimigo". E desejar que continue a sorrir com determinação e firmeza.
Existir é estar à espera de um amigo.
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