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Teoria Geral da Tragicomédia da Existência

por Nuno Costa Santos, em 14.03.18

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Antes de mais, a gratidão pelo prazer da leitura que este livro da Leonor Sampaio da Silva me proporcionou. Agradecer deve ser o gesto primeiro de um leitor satisfeito. E quando falo em prazer é mesmo esse prazer do gozo puro da leitura e de nela poder encontrar uma prosa que se diverte e nos diverte na forma como desenha as aventuras e desventuras de existir. Como ponto inicial, há que destacar o sentido de humor e picaresco que se contém neste livro. “ABN da Pessoa com Universo ao Fundo” divertiu-me como este ano, na literatura, me divertiram a “Ficção Completa”, de Mário-Henrique Leiria, editada pela E-Primatur, e os contos de Alface, reeditados pela Maldoror. Obras para gáudio dos leitores que têm da literatura a noção de que pode, além de tocar nas feridas essenciais da natureza humana, ser uma dança satírica com o desmazelo das ocorrências da biografia das personagens, o que é mesmo que dizer de todos nós.

O evocar destes autores tem um sentido. Aqui também há histórias, muitas delas curtas, também aqui às personagens acontecem diversos episódios, uns mais realistas, outros mais surrealistas, também aqui existe um uso das frases de todos os dias para as enquadrar de outras formas. E um tratamento lúdico da linguagem, que respiga adjectivos que, para usar uma formulação que poderia estar neste texto, tiram do sério os substantivos.

Destaco, além das personagens, o narrador. Faz uma espécie de Teoria Geral da Tragicomédia da Existência, sujeita, demasiadas vezes, ao, cito, fervor didáctico do universo. O universo é a grande armadilha e é, tropeçando nos astros desastrado, parafraseando Caetano Veloso, que segue o humano, fazendo das experiências as devidas interpretações. Essas interpretações estão aqui, espalhadas. Este é um livro de ficção com muito ensaio e crónica dentro, géneros que permitem pequenas reflexões, sardónicas, sobre as digressões várias. 
Destaco, também, a inventividade de algumas analogias. Como a que se faz entre o último dia do ano e o regresso à barriga materna. Algumas das coisas que aqui acontecem são do demónio mas não se julgue que isso basta para colocar o Diabo numa poltrona hollywoodesca de argumentista ilustre. Lê-se num dos contos: “O Demo mais não obteve do que o honroso primeiro lugar no concurso do Penteado Transcendental”. Repare-se na originalidade da formulação “Penteado Transcendental”. Ou desta, noutro passo: “Desgosto amorótico”. Ou ainda desta, noutro ainda: “Virose musical”. 
A língua aqui dança sapateado. E no sapateado por vezes há passos que parecem paradoxos: “(E é assim que) a Pessoa ganha a vida, sem trabalhar”. E é melhor praticar a arte da dança com a inspiração de Baco, se não a dança pode ficar presa. Fica o conselho, que podia ser um aforismo: “Nunca se confie num abstémio – ele jamais mudará”. Comentários de uso comum como “podia ser pior” são desenvolvidos em narrativas muito divertidas como a de “Contrição”, em que a protagonista chega a casa e vê a progenitora com um top justo diminuto e leggings brilhantes. E pensa: “Podia ser pior”.

Este é um livro que é uma grande gargalhada organizada. Uma mistura entre disrupção e dicionário. Gesto rabelaisiano, riso com significado que ou se manifesta numa sátira distópica, como em “Ku Klux Klan”, ou numa fábula com animais que, parecendo amáveis, se tornam tenebrosos e em que, pormenor delicioso, a formiga e a cigarra resolvem emigrar para outra história.

Este universo tanto compreende as práticas ancestrais da feitiçaria como os apelos devoradores da tecnologia. Há aqui televisões que se zangam com pessoas e as apagam e figuras mitológicas, como Marte, que têm página de facebook. Tanto se evocam as modalidades sentimentais do espírito como as mais comezinhas contingências do ser vivo. Encontramos aqui homens com terríveis comichões testiculares e cães que assediam - sim, porque não é só aos homens que acontece. 
Se se acentua aqui o peso do burlesco e das suas formulações, isso não deve retirar a marca lírica de “ABN da Pessoa com Universo ao Fundo”. Muitas são as passagens líricas. Alguns exemplos: “Nenhuma mensagem atravessou o corredor da noite”. Ou “Ter sido ave emboscada na sombra”. Ou “Não é Julho, mas é como se fosse”. O final do livro é mais lírico do que cómico. Como que o silêncio de um narrador generoso, decidido a fazer descansar as personagens. Recolhe-se com o dever, cumprido, de ter feito o que fazem os escritores: organizar, um pouco, pelo menos, o caos narrativo do mundo.

(Texto lido na apresentação de “ABN da Pessoa com Universo ao Fundo”, de Leonor Sampaio da Silva - Companhia das Ilhas, 2017 -, que teve lugar na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada no dia 27 de Novembro de 2017)

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publicado às 20:37



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