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O Dramaturgo na Época do Pós-Dramático

por Nuno Costa Santos, em 18.10.14

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Numa tentativa de melhor compreender as mutações da cena teatral contemporânea, Joseph Danan, depois de ter publicado “Qu’est-ce que la Dramaturgie” (Actes Sud-Papiers, 2010), editou recemente o livro “Entre Théâtre et Performance: La Question du Texte” (Actes Sud-Papiers, 2013).  Danan, ele próprio dramaturgo e professor de dramaturgia contemporânea na Sorbonne, continua inquietado com a questão de saber o que é hoje o texto teatral.

 

São apresentadas duas noções de performance: uma, em sentido lato, definida por Christian Biet e Christophe Triau e ligada ao acto teatral no presente na sua relação com os espectadores e com um texto fixado mas que se assume como secundário e mesmo facultativo; e outra, em sentido restrito, associada às artes plásticas e privilegiando mais a comunicação directa com a imagem e com o corpo do que o texto propriamente dito. Dentro deste segundo entendimento existe um conjunto de antepassados conhecidos como o compositor John Cage, o coreógrafo Merce Cunningham, o videomaker June Park e o escultor Allan Kaprow. E, merecendo um plano de destaque, Antonin Artaud e o seu Teatro da Crueldade – que procura em cima dos palcos uma experiência de vida – e Gilles Deleuze, com a sua “Lógica da Sensação”. E ainda artistas como Romeo Castellucci, em “Inferno”, e Angelica Liddell, em “La Casa de La Fuerza”.

Richard Schechner, professor de Estudos da Performance, situa o seu trabalho entre estas duas acepções do termo, naquilo que o investigador Hans-Thie Lehmann classifica de “teatro pós-dramático”, no qual os elementos constitutivos do drama são menos importantes do que a relação entre o texto e a audiência. É o happening, no qual se cruzam muitas vezes disciplinas artísticas de forma a criar um efeito imediato no público. Peter Handke e o seu “Outrage au Public” (1966) são apresentados como paradigmáticos nessa criação de um teatro da frontalidade no qual existe um confronto com a tradição aristotélica. Os actores não representam personagens diante dos espectadores, que se apresentam ao centro. Não representam nada exterior a eles.

 

É uma tendência que ficou até hoje, nota Joseph Danan. As equipas teatrais tendem a recusar a ideia de haver um texto dramático preexistente e privilegiam uma experiência ou um gesto artístico que seja atravessado de uma relação complementar e sem hierarquia entre artes como a música, a dança e o vídeo. O texto final, a existir, parte de improvisações ou de uma colagem de textos, sempre que possível, não dramáticos. É o laboratório que está na origem do efeito que se pretender criar.

 

Joseph Danan põe algumas reticências no gesto de classificar estas experiências como teatro mas não deixa de encontrar nelas elementos teatrais – um teatro atravessado de performance ou, com maior certeza, um “estado de espírito performativo”. A ideia de mimese é afastada. A representação de personagens e situações é substituída pela apresentação de seres humanos e das relações entre eles.

 

Um dos pontos fundamentais do livro está na passagem, muito pertinente, na qual Joseph Danan reflete na possibilidade de, numa época de crise, com os campos políticos muito marcados e com o regresso das lutas e das contradições sociais,  poder haver um regresso das convenções teatrais aristotélicas, com personagens, heróis e situações nas quais os espectadores se possam reconhecer. Para – acrescente-se – promover a catarse das suas inquietações urgentes.

 

Danan considera que a escrita dramática não precisa de fazer cair os seus elementos essenciais de diálogo e de acção e defende que o autor dramático deve sair cada vez mais do quarto para trabalhar com as equipas e passar a viver mais perto do palco, como os artistas plásticos, os coreógrafos e os músicos. É a ideia de que o escritor pode ser, ele mesmo, um dos agentes interessados em criar uma proposta que capte a atenção do público numa altura de dispersões várias.

 

Numa reflexão pessoal, pode afirmar-se que uma das razões pelas quais o texto dramático já não é uma condição essencial para a construção de um espectáculo é a possibilidade que encenadores e actores encontram de resistência à tirania do texto fechado, escrito por esse tal autor encerrado na sua torre de marfim criativa.

 

Possivelmente fatigados de representarem espectáculos de autor, quer clássicos (nos quais as alterações são por natureza limitadas) quer contemporâneos (nos quais é frequente haver resistências autorais), os encenadores e actores, libertos desse condicionamento, pretendem ser eles próprios agentes mais criativos e decisivos na edificação da raíz das criações.

 

Indo de encontro ao que escreve Joseph Danan, as peças de teatro, no sentido convencial do termo (actores, personagens, acções, diálogos) poderão ter uma nova oportunidade por diversas razões. Uma delas é o cansaço do “pós-dramático” e da sua intenção de criar um efeito forte e directo - orgânico. O próprio “pós-dramático” não é imune, como todas as vanguardas, ao perigo de ser transformar numa fórmula. E as fórmulas não surpreendem, não comovem.

 

Outra causa provável para o ressurgimento de textos de teatro em moldes mais consistentes é a circunstância de muitos dos espectáculos contemporâneos sem uma autoria definida e clara enfermarem de uma fragilidade constitucional evidente, o que acaba por prejudicá-los – a ideia provoca uma sensação  intensa nos espectadores mas dá por diversas vezes a sensação de que seria mais sólida se fosse suportada por uma dramaturgia trabalhada.  

 

No caso português, esse regresso é desejável, até porque em Portugal é relativamente escasso o surgimento de novas dramaturgias, que só poderão evoluir caso haja um diálogo regular entre autores, actores e encenadores – e restantes agentes (noutros países, como Inglaterra, a situação é diferente, com a tradição de autores residentes em companhias). Nenhuma dramaturgia poderá evoluir sem que haja uma comunicação directa e profícua com esses agentes teatrais.

 

Este possível regresso do autor dramático cria nos novos dramaturgos a responsabilidade de, além de suspenderem o ego artístico em nome de um diálogo em equipa, escreverem textos teatrais que sejam capazes de serem tão enérgicos e tensos como as mais estimulantes performances teatrais. Tão urgentes.

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