Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Em cada homem, concreto, único, irrepetível, há uma tendência para a generalização. O que se compreende. Se um tipo se fosse aqui pôr com rigores extremos tornava-se um chato do caraças. Aquele que ao balcão, com uma imperial à frente, usa notas de rodapé - também os há. Já fomos todos um bocadinho essa figura, mas tínhamos a desculpa de sermos adolescentes. Lembram-se de quando alguém mandava uma sentença na turma e nós esperávamos dois segundos para fazer o comentário: "Isso é relativo". "O Tó Carlos é um chato", dizia a Flávia. Dois segundos. "Isso é relativo". "A filosofia é uma seca!", dizia o Sandro. Dois segundos, às vezes três. "Isso é relativo". E assim passávamos por inteligentíssimos.
A generalização é um vício que começa na juventude mas vai crescendo com a falta de paciência que a idade traz. A um avô permite-se que arrase a classe política e jornalística enquanto vê o telejornal. É uma injustiça, claro, e bem perigosa, mas apenas se observada por gente mais nova. Ninguém se vai começar a discutir: "Desculpe, avô, há dois deputados do PS, um deputado do PCP e outro do PP que são muito interessantes". Uma jogada explicativa desse género merece um "vocês os novos são todos uns coninhas!".
Toda esta conversa para chegar aqui: a generalização do momento é "os jovens". Generalização, como sabemos, recorrente em todas as estações e todos os séculos. Os jovens são isto, os jovens são aquilo. Como todas as generalizações, deve ser investigada. Só um velho pode dizer, sentado no seu cadeirão, "os jovens são todos uns broncos!". Uns tipos vazios, sem ideias e com muita vontade de ser humilharem uns aos outros. Será uma generalização que faz sentido?, pergunto. Confesso a minha dúvida na resposta. Não sou especialista nem trago notas de rodapé sobre o assunto na carteira. A minha pesquisa - os meus "estudos" - partem apenas daquele método cusco que caracteriza todo o escriba: o de subir o volume ao tímpano nas conversas de café.
Neste instante habito uma biblioteca. Há aqui gente de vinte anos a folhear calhamaços e a fazer apontamentos. O que me impede de tirar notas.
Será que eu, um veterano, começo a poder usar uma generalização gratuita? "Os jovens têm todos a mania que são intelectuais!". Vocês que são novos (expressão que sempre quis usar) ajudem aqui o idoso.
Tenho medo de mim: sinto que me posso transformar num conservador digital. O tipo de cachimbo na mão que só lê, só ouve e só vê o que está em formato digital. Ainda vou ser o homem sem estantes, forma contemporânea do homem sem qualidades. Que património posso deixar aos meus crianços? Quando deixar o universo dos vivos, os moços já não vão poder ler os meus inteligentíssimoscomentários desenhados nas margens dos livros: "Ganda parágrafo!", "Fosga-se, este gajo é muita bom!" e "Que metáfora. Toma lá que já almoçaste!". A minha herança vai passar a ser uma pen, possivelmente com vírus. O testamento, qualquer coisa como: "Deixo a minha password do Público ao mais velho, a pass da Atlantic ao mais novo, os downloads de romances russos são distribuídos pelos dois. Quem se portar melhor pode ter assinaturas do Spotify e do Netflix até ao fim dos dias".
Esta doce sedução pelo digital só pode ser uma maneira desesperada de sublimar a melancolia de tudo perder. A legendária fuga em frente. Vou convencendo o espírito de que já não é decisivo ter a posse de livros, discos, filmes. E, pior do que tudo, jornais. Durante anos financiei com onerosa ternura a loja do Senhor Gulamo, a trinta metros da casa da minha avó. Não havia jornal que não trouxesse para casa. Até trazia o 24 Horas. Só faltava o Crime e não garanto que não o tenha adquirido num instante de agudização do vício.
O meu peugeot 106 de matrícula açoriana (AR) circulava por Lisboa como se fosse uma hemeroteca ambulante, transportando no banco de trás - há aqui amigos para confirmá-lo - tudo o que era jornal dos últimos seis meses. Um caos jornaleiro que tirava a possibilidade a um ser humano de se sentar convenientemente. A única benesse era a possibilidade de, durante uma viagem ao bairro alto, tanto se poder espreitar uma recensão da Spectator sobre o último do Martin Amis como uma reportagem-escândalo do Tal e Qual sobre o fenómeno da troca de casais na linha do Estoril.
Como é que um conservador nos hábitos passa do vício do papel para o vício digital? Simples: substituindo tradições. O hábito faz o monge conservador, sentado na sua poltrona com o mac em cima da quadriculada mantinha da TAP. (O setter irlandês podia completar o quadro mas aqui só os vizinhos é que têm canídeos). A ida ao café para folhear o diário é substituída pelo estacionamento matutino em frente ao portátil no território caseiro. Nem acredito que estou a escrever isto. Quem me viu e quem me vê, Dona Firmina. Vou ser um velhadas virtual. E ainda não me passei, como tantos dos meus comparsas, para os kindles e suas variantes. Não contem nada ao Senhor Gulamo.
“Punk Rock”, peça a que assisti ontem no Teatro da Politécnica, com a sala cheia e justo entusiasmo, é afinal de contas sobre o quê? Várias coisas, como a melhor arte. Antes de mais é uma peça sobre esse eterno tema que é a decisiva interferência que impede a comunicação entre os homens, a raiva que se liberta nos ambientes inanes e a certeza de que nada dura e por isso nada importa. E é também uma peça sobre um grupo de adolescentes, barricado numa escola privada, que detesta a palavra ‘devias’, para citar uma das personagens. Que vai tolerando o bullying até ao momento em que este começa a ser monstruoso. E que jura que só vai ter filhos aos 42 anos para depois pagar a alguém para tomar conta deles.
Simon Stephens, dramaturgo inglês nascido em Stockport, grande Manchester, foi a dado momento incluído à força na “In-Yer-Face Generation” - aquela que, nos anos 90, escreveu um teatro sujo, agressivo, com violência, sexo, humilhação em palco, e contou com uma protagonista maior: Sarah Kane. Stephens não se vê a si próprio como fazendo parte do gang. Assume influências do teatro grego, alega interessar-se pelas contradições do humano diante das brutalidade disto de estar vivo e aposta numa agilidade rara nos diálogos. E, ah, cruza tudo isso com a cultura pop que consumiu enquanto crescia (é fã de Stone Roses e “Punk Rock” traz como separadores temas dos Sonic Youth, White Stripes, Stooges e Mudhoney).
Mas o teatro que pratica é tão punk como o rock do título da peça – dá um pontapé com uma doc martens nas expectativas do espectador brando e adormecido. Um gesto que, mais do que destruir, é humano, humanista. Quer despertar. Não deixa de ser curioso saber que um dos assumidos tópicos do seu trabalho é o familiar. Diz em entrevistas: “Escrevo sobre famílias e acho que toda a gente, mesmo a pessoa mais isolada e individual, pode reconhecer o contexto de família e relacionar-se com este”.
Depois de conhecer as suas palavras, explode uma pergunta no final do enredo: mas que famílias têm esses moços? Que aconchego têm estes rapazes e raparigas que nomeiam o amor como quem nomeia um sumo com uma nova combinação de sabores? Não sei. Ninguém sabe.
Nunca mais perguntaram se já liguei à minha avó a saber da hérnia. Essa desatenção desgosta-me. Mas não é sobre a minha avó que me venho, cronisticamente, pronunciar. Venho falar da minha mãe, sua filha, a quem também devia ligar mais vezes. E de um senhor chamado Herman José, que agora celebra 40 anos de talento público.
Um mês depois de vir estudar para Lisboa, recebi uma chamada de minha mãe: “Lembras-te de quando te sentavas todos os dias ao fim da tarde para assistir à Roda da Sorte?”. A voz trazia a emoção de mãe que havia perdido o seu menino. Através da memória deste meu pequeno gesto diário revelava-se o amor e a saudade de uma mãe que via todos os dias o seu filho adolescente pousar a mochila no tapete da sala para se rir durante uns minutos. O terno costume quebrava-se com a partida do "emigrante".
Um concurso sobre nada, transcendido pelo improviso humorístico genial de quem o conduzia, era a minha missa de fim de tarde. Nossa - de tanta gente com a minha idade e com vontade de se divertir. Herman era o meu diácono – um Diácono pouco Remédios, um padre sem regras, libertário. Conhecia-lhe os refrões, os residentes no público, a Maria Ivone. Era um beato daquele momento humorístico, a quem uma geração prestava devoção ao mesmo que os pais, como é próprio dos pais, iam comentando que começava a haver ordinarice a mais no palavreado do garoto grande.
Há dois dias, numa aula de guionismo para candidatos a realizadores, passei um pedaço do último episódio da “Roda da Sorte”, dor de cabeça para quem realizava um programa de estúdio conduzido por um bicho indomesticável. O fecho da loja, durante o qual o apresentador disparou tiros contra o cenário e os electrodomésticos, no gesto mais punk da tv portuguesa.
Para a minha mãe ficam reservados telefonemas e encontros muitos. Ao Herman fica, aqui do meu cantinho, um obrigado. Ainda estás por aí e, sentado noutra cadeira, ainda topo, em dois ou três segundos, um fogo repentino, a tua vontade infantil de partir o serviço das tias. Se um dia fores fores escolhido pelo comité vais acabar a dar tiros no panteão.
Hoje, ao telefone, soube de outro artista (um actor) com mais de sessenta anos que vive “com dificuldades” – um daqueles que marcaram um público, transportaram uma agenda cheia e se cansaram com o trabalho, como aquele rapaz que conhecia Turim como se fosse o seu bairro. A gente vai-se esquecendo deles. Não aparecem nas breves dos jornais digitais. Não motivam debates. Não têm likes.
Vivem nos seus apartamentos, envergonhados por uma pobreza que só dois ou três amigos conhecem. Sofreram enquanto adolescentes e jovens adultos, motivados por um percurso artístico que a família e “a sociedade” não desejava, e agora voltam a esse estatuto de sobreviventes, numa altura em que mereciam da vida uma respiração mais apaziguada. Alguns estarão, injustamente, a trincar a culpa por terem seguido o instinto em vez de se burocratizarem em cursos “com saída” – aqueles que os pais lhes destinaram desde o nascimento.
A economia deu razão à prudência extrema. As finanças carimbaram as ordens contrariadas dos progenitores. Ninguém lhes liga nenhuma. Vão sendo esquecidos, como são esquecidos na rua os gatos que miam demasiado alto. A vidinha cultural que nos cabe torna os companheiros de ofício demasiado ocupados em garantirem o seu território e o dos seus para se lembrarem deles e lhes estenderem a mão. Sim, hoje soube de mais um. Amanhã já o terei esquecido.
Claudio Magris é cá dos meus. Apetece tomar um fininho com ele depois de ler esta passagem do seu livro “Alfabetos” (Quetzal, 2013): “Na literatura há muitas moradas e não é necessário escolher ideologicamente entre vozes contrastantes; pode-se – e deve-se – crer a um tempo na fé de Tolstói e na inércia de Oblomov”.
Não percebo por que é que, mesmo nas literaturas, é preciso escolher um lado, um clube, uma bancada. Ou os que acreditam ou os niilistas. Ou os que escrevem com metáforas ou os realistas mesmo quando sonham. Ou os comunas ou os que ajudam na capela. Ou os que escrevem na primeira pessoa ou os que têm protagonistas chamados Martim.
Claro que tenho os meus favoritos – e sou um moço de causas criativas e delirantes. Mas gosto de frequentar uma feira literária cigana de referências e de heranças. Nas estantes tenho Rilke encostado a Bret Easton Ellis. Gonçalo M. Tavares a Ricky Gervais. Mário de Carvalho a Manuel Clemente. Dormem todos juntinhos, de mão dada, a noite toda. Para adormecê-los leio-lhes sempre uma história – de um autor menor, claro, para ninguém se ofender. Às vezes acordo a meia da noite só para topar se os meninos estão a dormir. Há quem tenha um sono mais leve e, quando acorda, se ponha a soprar as folhas para acordar os outros. O Poe é um desses.
A estante é o meu coração em madeira polida. Com alguma tentativa de arrumo mas com uma desarrumação cada vez mais procurada e, assim espero, aperfeiçoada. O meu histórico literário tem lembranças muitas, influências contraditórias várias. Impuras. Cómicos com trágicos. Idealistas com cínicos. Budistas com bebedores de whisky. O Claudio, filho de um corretor de seguros e de uma professora primária (ou seja alguém que nunca podia pertencer apenas a uma agremiação), remata o pensamento desta forma cúmplice: “Talvez a minha odisseia literária seja aquela que conta a viagem ao nada e o respectivo retorno. Talvez, por isso, os escritores que mais me ensinaram tenham sido os que deram voz imparcial aos matizes mais diversos da vida e às paixões mais antitéticas, à fé e ao nada”. É isso mesmo, Magris. Dá cá cinco.
Conto-vos o meu momento de ingenuidade social. Aconteceu há doze, treze anos, em Vila Nova de Milfontes, na Praia do Malhão. Passava umas férias com amigos, comparsas de um Verão feliz (“É triste no Outono concluir que era o Verão a única estação”, escreveu Ruy Belo). Um Verão eterno assim ao estilo juvenil daquele que foi musicado pelos Capitães d’Areia. Éramos um dos grupos de animais sonolentos enrolados ao sol. À nossa volta, figuras como Fausto, Manuel Villaverde Cabral e Luís Nobre Guedes e uma data de personagens com um porte, um modo de falar e um corte de cabelo que os sociólogos de café classificam como “betos”. O bar aonde íamos à noite funcionava como uma espécie de bazar diplomático em versão bronzeada.
Levantei a crina e topei ao longe um casal, como se costuma dizer nas peças de sociedade, “misto” – um branco e uma preta (ou uma negra, conforme a sensibilidade). Ela era linda como uma modelo senegalesa e atravessava a areia com a elegância de uma pantera indiferente aos murmúrios da selva. Ele era alto e míope como um Pedro Paixão que resolveu descer aos areais. Um casal misto naquele território pouco misto motivou na minha pessoa o comentário de quem avista a possibilidade de diferença num lugar uniformizado. Gritei com tosca felicidade: “Isto da Praia do Malhão é um sítio muito progressista!”. Houve riso entre os meus - e possivelmente entre os outros. E, já me conhecem, mágoa no meu coração.
Uns segundinhos depois um dos meus amigos, frequente no território, explicou a causa da galhofa. A moça senegalesa estava ali para tratar de um bebé - um nobre bebé, de certezinha. Era a Naomi Campbel do babysitting. Cumpria o seu horário de trabalho como funcionária de uma família que podia pagar o luxo. A amorosa parceira do cidadão devia estar naquele instante a fazer uma carreirinha com o Deus Pinheiro. Ainda hoje nos rimos desse episódio que não enriquece um currículo de cínico, obrigatório para a sobrevivência dos dias. Mas, ao recordá-lo, pergunto se não terá querido dizer alguma coisa. É que no meu país haver casais entre pessoas de diferentes raças ainda é motivo de reportagem. Manuel S. Fonseca, quando Eusébio morreu, fez o lembrete decisivo: "eu tenho muito orgulho em que o melhor jogador português seja um africano, raio de um ex-império que nem um deputado negro consegue ter". Hei-de voltar a Vila Nova para actualizar o meu grau de ingenuidade.
Continua a haver vida em MArt. A vida deste que vos escreve, por exemplo. Além do curso de fitness para quem dá uns toques de bola literários (http://www.artemart.pt/ensino/fitnessliterario.html), estou envolvido num curso para pais e filhos (ou avós e netos), feito em colaboração com a Sofia Vargues. Ajudo as duplas a tratar da narrativa. A Sofia orienta as ilustrações. O resultado é um livro feito em família. Faixa etária dos crianços: 7-12 anos. Restantes informações aqui em baixo.
http://www.artemart.pt/ensino/criancas_familias.html
Fui praxado na Faculdade. Por alunos, sim, com uma data de provas patéticas mas inofensivas, distantes das que têm sido relatadas por estes dias na imprensa. Mas, no meu caso, a verdadeira praxe veio de cima. Praticada por docentes com tanto talento pedagógico e sensibilidade humana como tenho capacidade para resolver os exercícios com losangos que o meu filho mais velho traz às quartas para casa.
A praxe de ser apenas um número. De me sentir apenas um número. 6568, no caso. Mas podia ser 489.000 que ia dar ao mesmo. A praxe de ser violentado psicologicamente em provas orais, código para trás, código para a frente, nas quais era importante, por uma questão de "costume", levar uma fatiota. A praxe de assistir a uma prova oral em que um professor catedrático ia abrindo correspondência enquanto fazia perguntas a uma aluna cada vez mais pequena, minúscula na sua cadeirinha cá em baixo. A praxe de saber que um amigo foi repreendido nos corredores da Faculdade por envergar uma Tshirt.
São outras praxes, sim. Outra formas de se ser humilhado a partir de uma relação hierárquica. E estamos só a tratar do campeonato académico. Nos últimos tempos tenho sido praxado pelo Estado, que me colocou uma série de entraves a que conseguisse tratar dos impostos com a ajuda da minha insistente contabilista. E pelo atraso do reembolso do vasto guito que me deve. Há uns meses fui praxado pela EMEL - pela santa EMEL, equipa que cuida do estacionamento nesta cidade com um zelo de sanguessuga. Estendo um exemplo em cima da mesa: estacionei a minha viatura dentro de um parque de estacionamento de uma universidade e a cidadã fiscalizadora resolveu deixar um papelinho com conteúdo pouco poético no pára-brisas. Isto é uma praxe. E das duras. A que praxes os meus mártires leitores têm sido sujeitos? Contem.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.